Escrevo esta mensagem para todas aquelas que sabem o valor das decisões positivas e libertadoras que afirmam a vida e as lutas pessoais e coletivas, do passado e do presente. Faço deste relato um espaço para expor minha experiência pessoal pela decisão de fazer um aborto seguro, mas, infelizmente, ilegal. Confesso que titubeie algumas vezes para escrever.
Sentava diante da tela em branco e me perguntava: em que a minha experiência pode ajudar outras mulheres a pensarem e a viverem a decisão de interromper uma gestação? Entre muitas respostas que ensaiei nenhuma delas me capturou a ponto de me dedicar a um relato. Mas, essa demora, este longo processo que é falar sobre essa experiência foi importantíssimo, pois descobri que são, de fato, muitas respostas que juntas ajudam a responder à questão.
Primeiro, sou mulher, jovem, negra. Tenho uma formação pessoal e profissional em que pude, em muitos momentos, refletir sobre a construção da imagem da mulher negra na nossa sociedade. Logo cedo, muito jovem, ainda estudante um de colégio de classe média em que era a única negra da sala de aula, descobri que teria que fugir de todos os estereótipos e construir uma imagem autônoma de mim mesma e do que é ser negra e mulher numa sociedade que insiste em reproduzir e naturalizar o machismo e o racismo.
O caminho foi longo e estou bem longe de me satisfazer com as possibilidades e caminhos que encontrei que me ajudaram a construir outras imagens da mulher e do negro. Caminho que não percorri sozinha. Caminho construído pelo encontro com outras mulheres, outras negras e negros, outras gentes, coletivos e indivíduos que também lutam pela construção de outras imagens das minorias no plano simbólico, social, educativo, estético e etc.
E é pela construção e afirmação de outros modos de existência que encontrei finalmente um lugar para fazer falar o meu relato. Isso porque quando tomei a decisão de interromper a gravidez não pensei apenas em mim, não afirmei apenas o meu corpo, não deliberei apenas pela minha saúde física e mental. Essa decisão foi tomada e decisivamente afirmada pelo encontro que tive e tenho com todas aquelas que estão dispostas a construir um modo de vida que responda à insolência de um passado e um presente vilipendiosos, usurpadores e contaminados de ódio e preconceito levados a nível patológicos, e que responda também à construção, disseminação e polinização de nossos próprios discursos, narrativas e atos afirmadores de nossas identidades e diferenças.
Por uma história que não é só minha, decidir interromper a gravidez também foi um ato coletivo. Em nenhum momento do processo tive medo ou angustia. Em nenhum momento sofri censura psicológica; expediente que manipula muitas de nós a ter medo, se sentir culpada e humilhada por uma ação ou decisão que é nossa, simplesmente nossa. Quantas mulheres se sentem cobradas por todos os lados pela perfeição? Quantas mulheres constroem seus corpos e subjetividades guiadas pelas imposições sociais e morais das mais humilhantes e cretinas? Isso tudo colabora para impor a censura a nós mesmas. Enfim, guiada pelos encontros e pela necessidade de afirmação num lance decisivo passei pelo processo de interrupção da gravidez sem traumas, sem me machucar, sem me diminuir, sem me censurar.
Todo o processo dos efeitos da medicação foi lento, como é lento nosso ciclo menstrual, como é lento nosso metabolismo, nossa renovação celular, como é lento tudo o que é do nosso corpo, porque, afinal, não somos uma máquina! Mas, foi uma lentidão em que tive a oportunidade de me recolher em mim mesma, de sentir meus órgãos a minha temperatura, de dedicar um cuidado ao meu corpo e meus pensamentos. Estava acompanhada pelo meu parceiro, o que foi fundamental para compartilhar as sensações, as ideias, organizar coisas de ordem prática e elaborar coisas de outra ordem. No fim, passei por todo o processo com meu corpo refeito e minha mente renovada, pois desde então pude redefinir e reforçar a ideia, o discurso e as ações para continuar defendendo a autonomia das nossas decisões e dos nossos corpos. Porque interromper a gravidez não é um bicho de sete cabeças e, definitivamente, não pode ser uma condenação que nós mesmas nos imporíamos!
Não posso deixar de dizer que em tempos sombrios como os nossos a luta pela legalização do aborto deve ser gritada, ecoada junto com outras forças afirmativas que se juntam pela construção de um mundo sem opressão. Mas, também não posso deixar de dizer que enquanto a legalização não acontece, (porque a nossa decisão não pode esperar a morosidade de um sistema político e jurídico comprometidos com uma moral tosca e canhestra que só sabe salvaguardar privilegiados históricos) eu apoio, estimulo, contribuo e agradeço às iniciativas que ajudam muitas mulheres, que como eu, decidiram interromper a gestação. Sou imensamente grata a esta grande rede lutadora que não tem medo de afirmar a autonomia e a liberdade das mulheres e dos seus corpos. Porque não estamos apenas em um bairro, em uma cidade, em um país. Estamos espalhadas por todo o mundo. Porque enquanto for negada a liberdade a uma única mulher, seremos todas clandestinas!