27 anos, Porto Alegre
Adulta, bem informada, consciente e previdente, desde o início da minha vida sexual aos 15 anos. E até então crente que ninguém, ou pelo menos nenhuma “adulta bem informada”, engravidava, de verdade, “sem querer”, mas assim foi. Pouco depois de uma separação do mais próximo que cheguei de um casamento, uma vida conjugal de 4 anos, que para mim já tinha acabado há algum tempo, e já envolvida com outra pessoa. Mudando de Estado, começando um emprego novo. Ainda chegando, meio perdida, numa nova cidade.
A menstruação atrasou um pouco, nem era ainda para se assustar. Cinco dias? Estava apreensiva, mas isso já havia acontecido antes. Acabara de chegar de uma viagem de algumas semanas no exterior, a trabalho, e certamente a mudança de rotina e de fuso horário poderia influenciar meus fluxos e ciclos. Mas curiosamente, e nunca tentei achar alguma explicação para isso, um amigo fez uma brincadeira com o novo casal que prometia se formar: “para quando é o filho?” “Que filho?” “O filho de vocês…” Eu que já estava meio apreensiva, fiquei bastante intrigada, mas guardei as apreensões comigo. E resolvi fazer um teste. Na verdade, apenas mais um, que como outros, de outros momentos em que a TPM me deixara tensa, ia apenas servir como a confirmação necessária para o alívio.
Na manhã seguinte, comprei um teste a caminho do trabalho e fiz no banheiro de uma padaria mesmo. Relativamente tranquila, sem muita expectativa. Ia dar negativo de novo, certamente, mas não. O teste veio com defeito, só podia ser isso. Duas listrinhas “acenderam” rapidinho. Reli as instruções, sabia que podia falhar. “Mas peraí…parece que quando falha dá negativo…” Fui trabalhar um pouco tensa. A ficha não tinha caído. Em dois dias, fiz três testes de farmácia e mesmo assim não acreditava totalmente. Não podia ser verdade. Não podia estar acontecendo comigo… Comentei com meu ficante. “Fiz um teste, deu positivo. Mas acho que fiz errado. Não, calma, acho que ainda não é o caso de se desesperar…”. E acho que mais pelo pânico que vi nele do que por ter pensado mesmo a respeito, falei logo de cara “Se for mesmo, a gente pode fazer um aborto”. Nunca fui contra o aborto, nunca foi algo que me chocou tampouco. Mas a verdade é que, embora eu respondesse sem pestanejar que “sim”, se alguém me perguntasse se era a favor do aborto ou de sua descriminalização, nunca tinha parado pra pensar sobre isso a fundo. Não era uma realidade tão concreta para mim.
Nos dias que se seguiram, após um teste de laboratório que acabou, finalmente, com minhas dúvidas, nós dois nos desdobramos em pesquisas e buscas de alternativas, inclusive na internet. Descobri que existiam sites que instruíam abortos seguros em casa, não eram brasileiros, mas me sentia culpada até mesmo por estar fazendo essas buscas. Sabia que estava prestes a fazer algo ilegal. Liguei para minha ginecologista no outro Estado, eu sabia da sua militância feminista e contra a violência contra a mulher, e, embora, nunca tivesse conversado muito com ela sobre esses temas, sabia que ela poderia me ajudar, me orientar. Ela, do consultório, me respondia somente “sim” ou “não” a perguntas que eu fazia de um orelhão na rua, só para confirmar o que já havia lido na internet…“É seguro fazer em casa?” “Usando tal comprimido?” “Tomo?” “Insiro na vagina?” É duro lembrar… Nós, duas mulheres, ela me ajudando a manter minha liberdade de escolher, eu simplesmente querendo ter direito de escolher… nós duas, clandestinas.
Meu parceiro conseguiu um comprimido contrabandeado, um ou dois, nem sei, não lembro. Comprou de um camelô, pareceu caro para um comprimido, mas dava para pagar. Prevendo um dia difícil, embora, sem saber exatamente o que esperar, preferi ficar na casa de minha grande amiga que felizmente morava na cidade a qual eu acabara de chegar. Ela me acompanharia, me apoiaria, e ficaria de olho se algo desse errado. Cheia de medo, usei os comprimidos como sugerido, nem lembro mais como era. E esperamos, apreensivas. Esperamos horas. E nada aconteceu. Chegamos a conclusão que os comprimidos eram falsos.
A essa altura, o ficante, que morava na cidade, já estava conversando com amigas para descobrir onde encontrar uma clínica. Mais uma vez me sentindo criminosa, fui até lá, acompanhada dele. Não havia telefone. Só um endereço de uma casa sem nenhuma placa na porta. Fomos recebidos em um consultório médico, logo na entrada da casa. A médica fez várias perguntas, incluindo se a gente tinha certeza de que queria abortar, explicou o procedimento, falou dos preços e da necessidade de se levar um exame ultrassom para a identificação correta da idade do feto, sugerindo inclusive onde poderia fazer por um preço baixo e sem precisar dar muitas explicações. Fui sozinha, quis ir sozinha. Lembro de ter dito “não, deixa que eu vou só. Não precisamos os dois passar por isso”. Acho que teria sido pior mesmo se ele tivesse ido. As pessoas felicitam, perguntam “primeiro filho?”. Ninguém cogita a possibilidade da mulher não estar feliz ou simplesmente não estar interessada naquela gravidez. Ainda tive que inventar uma história para o rapaz do “scanner”, pois ele ficou intrigado com um ultrassom pedido “com tão pouco tempo de gestação”. Eu estava tentando engravidar e eu achava que tinha engravidado um mês antes, e a médica tinha dúvidas. Essa foi a história. Como minha médica era de outra cidade, eu não tinha requisição do exame, pois tinha falado com ela por telefone…
Voltamos à clínica no dia seguinte com o exame em mãos e a grana reunida. Como era bem no início, era o procedimento mais barato, mas ainda assim, o custo total era mais da metade do meu salário (e eu ainda nem havia recebido meu primeiro!). Nós rachamos. Ele ficou na espera, eu fui para a sala de procedimentos. A clínica pareceu muito confiável, limpa e bem organizada, com várias mulheres trabalhando e algumas sendo atendidas em uma sala grande com várias macas. Tirei a roupa, coloquei um avental, deitei. O tempo todo me perguntavam se eu estava bem, se eu estava tranquila, se eu estava segura de que queria fazer aquilo. Explicaram o procedimento, e perguntaram mais de uma vez se eu tinha certeza, se ninguém estava me forçando, se as outras pessoas envolvidas também concordavam. Sim, eu estava tranquila. Meio anestesiada com toda a situação, que ainda me parecia meio louca, mas me sentindo muito segura e acolhida por todas aquelas mulheres. Na maca, de pernas abertas, adormeci com o sedativo que me deram. Disseram que duraria uns 15 minutos e que eu não ia sentir nada, pois estaria adormecida. Logo apaguei. Acordei meio assustada, e ainda dopada, quis ir embora, logo, rápido, correndo. Me vesti toda atrapalhada, as moças ajudaram. Sugeriram que eu ficasse um pouco mais, eu não queria. Na saída, ainda passamos no consultório, onde nos deram um medicamento antinflamatório e instruções para tomá-lo e um celular para ligar em caso de emergência, mas mais uma vez reafirmando que tudo ficaria bem, e que depois de uns dois dias de repouso, eu podia voltar às atividades normais. Talvez tivesse alguma restrição sobre sexo, mas quem prestou atenção em toda essa conversa não fui eu, eu não tinha condições. Acho que tudo isso durou cerca de uma hora. Lembro também que pediram para tomarmos o cuidado de não pegar um táxi em frente àquela casa clandestina.
Em casa, acompanhada pelo ficante que depois virou amigo, chorei. Não era de dor, nem de arrependimento. Era do estado de choque, no qual eu passara os últimos dias, se esvaindo. Do dia em que fiz o primeiro teste até o dia do aborto passou apenas uma semana. Foi muito rápido e tudo bastante objetivo, mas cada segundo dessa semana pesou como a eternidade. Nunca me arrependi, um filho naquele momento teria sido um problema na minha vida. Mas desde aquela semana, se por um lado eu passei a pensar com ternura na possibilidade de ter um filho no futuro, eu nunca mais parei de chorar por dentro pela imensa massa de mulheres que não podem literalmente pagar o preço de fazer em segurança uma prática tornada clandestina por uma sociedade moralista e machista e que morrem, quando não literalmente, na sua subjetividade, autonomia e projetos de futuro, carregando o peso de uma escolha que não foi sua. Isso sim dói.