#clandestina77

Branca, 22 anos, São Paulo.

É a típica situação a qual achamos que nunca vamos passar. Sempre me cuidei, já ouvi histórias e sempre pensava que estaria longe de vivenciar algo assim. Confesso que algumas cheguei a pensar que a pessoa foi burra ou teve culpa, mas convenhamos que não cabe a mim julgar ninguém.

Tomei pílula por alguns meses há 4 anos atrás, mas devido as mudanças que meu corpo foi sofrendo achei melhor parar, nunca precisei muito, não mantinha relações sexuais frequentemente, então camisinha era um método bom para mim.

Fiz intercâmbio para um país onde o aborto é legal, conheci um cara maravilhoso que também era de um país onde o aborto é legal e gratuito. Ficamos um tempo juntos, mas como já estava com minha volta marcada não criamos esperança de que continuaríamos nos vendo, aproveitamos ao máximo o tempo que tínhamos e foi maravilhoso.

Uma bela noite a camisinha estourou, sabia que não estava no meu período fértil porque controlo minha menstruação há anos, mas não quis arriscar então logo na manhã seguinte saímos para comprar a pílula do dia seguinte. Tomei a pílula, compramos camisinhas de outra marca para não correr o risco novamente e continuamos aproveitando os dias que seguiram, já estava na semana de minha volta.

Sempre fica aquele medo, e se a pílula não funcionar? Mas dessa vez não senti esse medo, afinal anoto tudo e estava de fato no meu período ‘seguro’ para sexo.

Voltei para o Brasil, passados alguns dias percebi que minha menstruação não veio, pensei que poderia estar atrasando devido a pílula. Achei melhor esperar um pouco mais.

10 dias e nada.

Contei para uma amiga e resolvemos comprar um teste de farmácia. A primeira listra era bem forte, a segunda nem tanto, ficamos na dúvida, mas naquele momento já sabia que era verdade.

No dia seguinte fiz o exame de sangue para não restar dúvidas, mas nada novo, deu positivo e pelos níveis estava de aproximadamente 4 semanas.

Em nenhum momento eu pensei em manter a gravidez, foi instintivo, 22 anos, estudante, desempregada, morando com os pais, completamente sozinha. O cara não ia me ajudar muito, 22 anos também, estudante e morando em outro país, no fundo sabia que a responsabilidade sempre cai em cima da mulher.

Tenho duas amigas que passaram pela mesma situação um ano antes de mim, uma resolveu numa clínica, o que pra mim estava fora de cogitação, não tinha nem metade do dinheiro e não queria contar para o cara. Minha outra amiga me passou contato de um coletivo que indica lugares para comprar o medicamento e dão assistência psicológica.

Eu queria resolver aquilo o quanto antes. Enquanto estive fora do país trabalhei e me banquei sozinha, morava sem meus pais e em um país de primeiro mundo. Chegar aqui pra começar do zero e ainda grávida não foi nada fácil.

Marquei com o coletivo na data mais próxima que eles tinham, em 2 semanas, mas estava com muita pressa, tudo me deixava mal, não conseguia sair, não me sentia bem em casa, odiava ter que ver as pessoas e fingir que nada estava acontecendo e fingir que estava feliz por voltar.

Pesquisando encontrei três contatos que conseguiriam o remédio mais rápido, duas eu não senti a menor segurança, parecia mais uma transação financeira e eu achei que tentariam tirar vantagem de mim. A terceira foi muito amigável, me contou que ela mesma passou pela mesma situação, me explicou como foi o procedimento e ficou a disposição para eu tirar dúvidas, ela disse que não vendia o medicamento, só repassava, então não teria lucro nenhum.

Pedi que ela pegasse para mim e no meio da semana ela já estava com ele em mãos. Quando nos encontramos eu estava com muito medo, não conhecia a pessoa e só conseguia pensar no pior, e se ela estivesse armando para eu ser pega? E se não funcionasse? Viver num país onde o aborto é ilegal não impede que as pessoas abortem, só faz com que as pessoas façam o procedimento sem a menor segurança e muitas acabam morrendo no processo.

Acabei contando para o cara, afinal não era um problema só meu, queria dividir a responsabilidade e ter alguém do meu lado. Ele tentou me dar apoio, mas eu percebi que infelizmente a mulher está sozinha nessa hora. Ele não ofereceu dinheiro e eu não tive coragem de pedir, não acho que tenha feito a escolha errada contando, mas me decepcionei muito.

Gastei todo o dinheiro que tinha, fiquei com 5 reais na conta, mas valeria a pena, afinal eu conseguiria voltar a ter minha vida.

Tomei 2 comprimidos e inseri 2 na vagina. 1 hora depois e não sentia nada. 2 horas e nada. 5 horas e nada. 10 horas e nada. Mandei mensagem avisando que não tinha acontecido e a menina me disse para continuar deitada, pois demorava mesmo. Mais de 12 horas esperando, torcendo e absolutamente nada aconteceu.

O desespero foi enorme, não tinha dinheiro, coloquei toda a minha confiança na menina e não acho que tenha sido por maldade, mas de boas intenções o inferno está cheio, é muito irresponsável repassar algo que nem você tem certeza que vai funcionar. Fiquei com tanta raiva, medo e ainda mais insegurança.

Fui na consulta no dia marcado e a médica me pediu um ultrassom, naquele ponto eu já havia pesquisado muito e estava com medo de ter uma gravidez ectópica. Fiz o ultrassom e não parecia real, eu vi o que estava dentro de mim, mas não parecia nada, não senti afeto, não senti medo, nem receio, não senti nada, era muito estranho, só queria acabar logo com essa etapa.

Liguei no telefone que me passaram e consegui marcar para pegar o remédio no final da semana, o medo surgiu novamente, e se forem atrás de mim? E se eu for pega? E se não funcionar? O medo de estar fazendo algo ilegal somado ao medo de abortar e estar sozinha são horríveis, me senti uma pessoa ruim por um tempo, mas eu só estava cuidando do meu futuro, nunca tive vontade de ser mãe e sempre achei ridículo não poder ter direito sobre meu próprio corpo. Ninguém tem o direito de me fazer manter uma gravidez que eu nunca quis.

Nesse ponto eu já não tinha mais dinheiro, por sorte meus pais me deram dinheiro para passar o mês (alimentação e transporte) e foi com ele que consegui pagar o remédio (3 vezes mais barato que o anterior inclusive).

Foi me dado 1 comprimido de mifepristona e 6 de misoprostol. Muito mais do que a vez anterior. Tomei o mifepristona e 24 horas depois coloquei 4 comprimidos de misoprostol debaixo da língua por 30 minutos, depois engoli o que sobrou. Passados poucos minutos eu já sentia algo acontecendo, não era cólica, não sei explicar. Senti muitos calafrios e um pouco de enjoo. Me deu diarreia e um pouco de cólica, nada forte.

3 horas depois coloquei os outros 2 comprimidos debaixo da língua e depois de 30 minutos engoli novamente o resto. Estava com muito medo da dor, pois havia lido que é uma dor muito forte e um sangramento intenso. Eu já estava quase de 9 semanas então estava esperando muito sangue e dor.

Acabei dormindo e acordei 2 horas depois com vontade de ir ao banheiro, quando sentei senti o sangue escorrendo, nada assustador, uma quantidade razoável de sangue.

Voltei a dormir, acordei novamente e senti o que acho que tenha sido o coagulo que tanto falam, mas não foi muito grande e nem senti a dor que todas as mulheres tanto falam.

Eu havia tomado ibuprofeno para a dor e não sei se foi isso que fez o procedimento ser tão tranquilo quanto foi, eu estava esperando o pior, mas foi muito mais fácil do que eu imaginava.

A menstruação continuou por aproximadamente duas semanas, as vezes coágulos pequenos saiam, mas nenhuma dor.

As chances de eu estar grávida eram quase zero, eu me cuidei, mas infelizmente acontece com algumas mulheres, hoje vejo que se tivesse mantido a calma desde o começo teria sido algo muito mais fácil e menos traumático. O aborto vai acontecer, o Estado querendo ou não, nós temos controle sobre nosso corpo e a decisão é nossa. Algum dia se eu quiser ter filhos terei e nunca vou me arrepender do que fiz, não era o momento certo.