#clandestina14

22 anos, Vila Velha (Espírito Santo).

Eu estava ficando/namorando (quem precisa de rótulos, né?) com um guri de 28 anos. Um amor, sempre muito atencioso, carinhoso e amigo. Estávamos ficando há 4 meses apenas, mas já parecia muito tempo. Sabe quando a intimidade/afinidade superam o espaço-tempo?

No entanto, em toda minha vida, as pessoas que comecei a gostar tiveram que viajar pra bem longe. Parece um karma. Na verdade tenho muitos karmas, um deles é que perdi a virgindade sendo molestada bêbada pelo meu próprio namorado, quando tinha 14 anos. Ele havia colocado um remédio em minha bebida e eu fiquei completamente mole. Esse  é um dos karmas que me aprisiona a não confiar e gostar das pessoas facilmente. Enfim, voltando ao outro karma.

Como estava falando, no entanto, as pessoas que começo a gostar e confiar viajam pra bem longe. Dessa vez não foi muito diferente. Ele foi fazer intercâmbio na Irlanda. Continuamos a conversar e resolvemos que, se um de nós ficasse com vontade de ficar com alguém, nós falaríamos e assim encerraríamos nossa relação.

Passou-se uma semana que ele viajou e eu comecei a sentir coisas estranhas. Na verdade, menos de uma semana. Fiquei com medo do que estava sentindo, mas não fazia sentido, visto que eu havia emendado o anticoncepcional. Mas mesmo assim fiz o exame de sangue e deu positivo. Eu não acreditei naquilo que eu vi. Não poderia ser verdade! Aí então fiz um segundo exame de sangue em outro laboratório e lá estava o resultado positivo novamente.

O choque da realidade estampado na sua cara. COMIGO? POR QUÊ?

O problema é que, mesmo sabendo dos riscos e se cuidando, TODAS NÓS somos vítimas de um país machista e estamos aptas a entrar numa situação como esta. Pq digo machista? Fui ligando os pontos e, por começar a ler muitos textos sobre anticoncepcional, descobri que eles perdem o efeito quando você toma antibióticos. E na semana eu havia tomado muitos, visto que estava com infecção urinária. Mas algum médico me avisou isso? Claro que não. Minha vida sexual nada importa pra eles.

Vi o resultado no trabalho e precisava respirar fundo e fingir que nada havia acontecido. Precisava contar aquilo pra ele. Mas como contar? Não fazia nem duas semanas que ele estava na Irlanda! Enfim, fui contar. Ele me deu todo o apoio, disse que se tivesse que voltar de lá, voltaria.. e disse que achava que aborto era muito agressivo para o corpo de uma mulher, mas que apoiaria qualquer decisão que eu quisesse tomar. Muitas de nós saberão o que é esconder lágrimas no trabalho pra não deixar transparecer a tristeza da situação em que está. Pra melhorar, no dia, minha chefe resolveu que deveria brigar comigo por motivos chulos… visto que minha postura havia mudado (pq será, né?). Além de viver aquela pressão em minha cabeça por estar grávida, tinha que manter a racionalidade no trabalho.

Procuramos juntos métodos abortivos. Uma amiga me passou um contato de uma mulher do norte do estado. Tentei o Women on Web, mas nem pro Brasil e nem para a Irlanda do Sul eles estavam mandando. Tentamos a única chance, podendo tomar um calote de 800 reais. Ele resolveu que pagaria tudo, visto que todo o resto do sofrimento estaria comigo. Pagamos e o remédio chegaria em 3 dias. Passaram-se 5 dias e nada do remédio chegar. Pensei: TOMAMOS UM CALOTE DE 800 REAIS. Comecei a chorar desesperadamente. Como ter um filho?!

Tudo o que eu queria era uma pessoa pra me abraçar e falar “vai ficar tudo bem”. Mas só conseguia ler isso do computador, afinal, meu namorado estava na Irlanda. Pois bem, pelo menos me apoiava em todo e qualquer passo. Mas não foi fácil.

POR MUITA SORTE, eu recebi uma mensagem na página feminista que administro no Facebook de uma moça que queria protestar e encher a delegacia de mulheres que já abortaram. Reparei de onde ela era e era exatamente do mesmo lugar onde vivo. PERFEITO! Não pensei duas vezes para perguntar a ela sobre aborto. Ela conversou comigo, disse que era de um coletivo feminista e que conseguiria os remédios pra mim. Isso foi no último dia em que eu não tinha mais esperanças de conseguir algum remédio.

Eu já havia falado com algumas colegas feministas de SP, Rio… mas nada, ninguém tinha o contato. Muitas tentaram me ajudar, mas sem sucesso. Agradeço a cada uma delas. Prestem atenção: MULHERES AJUDAM MULHERES.

Fui até a casa da moça comprar os outros remédios. Mais 800 reais desembolsados pelo meu namorado da Irlanda. Peguei os remédios e ela me ensinou como fazer. Super atenciosa e carinhosa. Fui com uma das únicas amigas que estavam me acompanhando. Se não fosse ela e mais outra, eu estaria completamente sozinha.

Nesse meio tempo, eu já havia desmaiado dentro do ônibus uma vez, e duas vezes numa festa. Devia estar com anemia, visto que sou vegetariana e, admito, me alimento muito mal. Até fui na ginecologista, sozinha, para tentar marcar um ultrasom e ver quanto tempo eu estava. Mas a mulher me tratou tão mal. Quando eu perguntava as coisas pra ela, ela pedia pra terminar de falar, foi totalmente arrogante e falava 10 vezes em aborto. Parecia que isso estava escrito na minha testa. Ninguém te apoia nesse momento. Tudo o que eu precisava era de um abraço, de carinho, de apoio. Mas eu precisava aguentar aquilo sozinha. Forte. Senão eu sendo forte por mim, quem seria?

Bom, enfim, tomei o remédio e introduzi. Isso na casa da minha outra amiga que estava me ajudando. Depois de algumas horas, ouvimos o correio chamar. SIM, ERAM OS OUTROS REMÉDIOS. Mas ok. Comecei a sentir calafrios, cólicas fortes. Senti o dia inteiro. Só de madrugada eu senti uma cólica mais forte e um líquido que parecia água sair. Depois fui ao banheiro e saiu bastante coisa, um fluxo bem grande de sangue com algumas membranas. Só isso? Perfeito. Foi um alívio gigantesco na minha vida.

Liguei a TV alguns dias depois e vi a Marcha para Jesus sendo conduzida por alguns pastores. Exatamente na hora em que liguei, vi um deles, homem, falando que “devemos cuidar daqueles que não podem se proteger de mulheres que querem os matar”. Comecei a chorar. De tristeza, de raiva. Como lidar com esse desprezo da sociedade para com nossa vida feminina? Nossos direitos! Era como se eu fosse insultada e desprezada por um grupo de pessoas que não estão nem aí pra uma vida formada. Que sofre, que chora. Condenam-nos a vida inteira por um peso que poderia ser evitado?! Enfim.

Passou-se uma semana e eu menstruei. O problema é que estava sozinha em casa e comecei a sentir as cólicas MUITO, MAS MUITO fortes novamente. Eu me revirava na cama, me contorcia, eu chorava de dor e pensava “essa merda não vai acabar nunca?”. É difícil ser racional nesse momento, eu pensava em culpa, eu pensava em querer que aquilo acabasse logo. Eu só queria paz.

Aí, depois de dois dias inteiros, de dia e de madrugada, me revirando na cama e sentindo a pior cólica da minha vida, fui ao banheiro e saiu o que deveria ter saído há uma semana atrás. O feto.

Nesse momento, eu precisei ser forte. Aceitei toda a escolha que havia feito. Era um misto de desespero e alívio ver aquilo na minha frente. Não me afrontei ao ver sangue, pois nós mulheres vemos todo o mês, mas ver AQUILO em meio ao sangue foi um tanto impactante.

Agora estou bem. Continuo a conversar com o menino na Irlanda. Nosso respeito e carinho um com o outro aumentou ainda mais e nos fez ficar ainda mais íntimos. Continuo a viver minha vida como o planejado. Só penso que se o aborto fosse descriminalizado eu não precisaria passar por isso.

Imaginem.. Eu tive uma cama pra me revirar. E as mulheres que se reviram em banheiros públicos de terminais, de rodoviárias… que sangram até a morte e morrem em meio ao lixo, ao pútrido, à escravidão de uma vida miserável? A minha dor é apenas um milésimo de dores que acontecem anualmente com milhares de mulheres.

Toda vez que leio uma matéria sobre aborto, ou ouço alguém falar com ódio de pessoas que já abortaram, eu sinto uma imensa vontade de chorar. E olha, eu ouço isso dos meus pais. Mas como lidar? Eu ainda não superei o trauma totalmente, mas o ódio que eu sinto dentro de mim dessa situação vai ficando maior de acordo com os comentários.

É uma realidade que me fez amadurecer e ver que nós, mulheres, estamos todas juntas lutando pelos nossos direitos. Independente de classe, cor, idade, … estamos JUNTAS. Claro, se eu tivesse dinheiro seria muito mais fácil ir à uma clínica clandestina e pagar 4 mil reais pra fazer isso. Mas não foi isso que aconteceu. Todo dia é dia de luta feminista. Todo dia é um aprendizado.