#clandestina50

Cinco meses atrás, eu mudei de ideia. Eu não dormi na casa da minha amiga, como o combinado. Nem fiquei com o cara que sempre fico, como o esperado. Eu resolvi fazer diferente. Eu resolvi dormir com um cara, casualmente. Eu resolvi sair da festa mais cedo e ir para um motel. Eu resolvi me permitir fazer o que eu estava com vontade.

Transamos. Algumas vezes. Em uma delas, a camisinha estourou e eu não tomava anticoncepcional.

Fiquei preocupada, mas, como todas as minhas amigas – sim, TODAS – já fizeram alguma vez, eu tomei a pílula do dia seguinte. Segui as instruções, tomei dentro do horário. Tomei assim que pude.

Duas semanas passaram, nada de menstruação. Fiz teste de gravidez – negativo.

Passou outra semana. Fiz outro teste de gravidez. Negativo.

Dois testes não foram suficientes para aliviar minha cabeça, então resolvi fazer o exame de sangue. Cheguei na clínica como quem não estivesse nervosa. Tentei não demonstrar a importância daquele exame na minha vida, ainda preocupada com o julgamento de quem me atendia. “Você não é menor de 18 anos, não?”. “Não”.

Três horas depois, fui buscar o exame. Tremendo e com o coração na boca, aguardei a moça, que já havia visto o resultado, embrulhar o papel no envelope, com a expressão mais tranquila que poderia fingir. Com calma, fui até o carro e abri o envelope.

E então, eu entrei nos 5%. Entrei nos 5% quando a pílula não funcionou. Entrei nos 5% quando fiz um teste de gravidez e deu negativo, mas não era. Entrei nos 5% quando fiz outro teste, que também deu negativo, mas também não era.

Dei ré e sai. Minhas mãos tremiam e meu coração nunca esteve tão acelerado. Nenhum momento da minha vida se compara a esse. Desesperada, liguei para minha prima e uma amiga. Me esforcei para dirigir enquanto tremia e soluçava sem pausa.

Chegando em casa, minha prima estava me esperando na porta. Desabei mais ainda, se é que era possível. Ela me abraçou. Tive que sentar de tanta fraqueza que senti ao mesmo tempo em que sentia o peso do mundo no meu corpo.

Resolvemos fazer mais testes. Minha prima comprou 3 deles.

“Grávida”.

Aquilo era real. “Positivo”. “Grávida”.

Saímos de casa antes que meus pais chegassem e fomos encontrar uma amiga. Jamais conseguiria enfrenta-los. Pelo menos não tão cedo.

Juntas, pesquisamos remédios abortivos, ligamos em farmácias na cidade inteira, falamos com todos os amigos que poderiam ter mais informações, tudo isso sem falar que se tratava de mim. Não encontramos nada. Era tarde. Fui pra casa, tomei banho, dormi. Naquela noite sonhei que não estava grávida.

A sexta feira chegou. Era feriado, o que dificultou qualquer informação. Passamos sexta, sábado e domingo com famílias e amigos, disfarçando nosso nervosismo. Não consegui tirar minha cabeça disso nem por um segundo. Tudo o que eu pensava, tudo o que eu olhava, dizia “Bebê à bordo”. Havia um ser crescendo dentro de mim. Um ser que eu não queria.

Na segunda feira, duas de nossas amigas indicaram um médico que elas sabiam que fazia aborto e era confiável. Imediatamente marcamos a consulta para terça. Fomos até ele e na quarta marcamos a cirurgia.

R$4500,00 foi o valor total que pagamos pela consulta, cirurgia e remédios. Às 5h40 da manhã saímos (eu e minha prima) de casa – escondidas – e às 6h20 estávamos na frente da clínica.

Às 6h50 entrei na sala para conversar com o médico. A ajudante dele me pediu para tirar a roupa e me deu uma touca, um jaleco e uma meia cirúrgica. Deitei na maca na posição em que o procedimento é feito. A ajudante amarrou minhas pernas. “Você vai sentir muita dor ao acordar, então a gente amarra para a perna não cair da mesa”. O médico aplicou um analgésico e um remédio para que eu dormisse, colocou um instrumento na região e essa é a ultima coisa que me lembro, pois logo apaguei.

Acordei com muita dor e entendi o porque de amarrar minhas pernas. Me contorci de dor e o negócio de amarrar não foi o suficiente para me segurar. Logo a ajudante do médico chegou. “Já acabou”. Fiquei de bruços esperando a dor passar.

7h40 já saíamos da clínica. Fui direto para a faculdade, tinha aula naquele dia.

Enquanto isso, o “pai” confirmava eventos e postava fotos no facebook com a nova namorada. Enquanto eu vivia o inferno, a vida dele seguiu. Normalmente. (Mas são os homens do congresso que devem definir esse lei, não é mesmo, gente??)

Não. Eu não acho que um aborto é algo simples e banal. Foi muito difícil chegar ao ponto de decidir fazê-lo, mas eu, que nunca pensei em ter filho um dia na minha vida, não tinha e ainda não tenho o psicológico e a responsabilidade que eu acredito que ter um filho exija. Colocar um filho no mundo sem a intenção de tê-lo não é o que eu quero para mim e, muito menos para um bebê, que não teria o cuidado e atenção que merece.

Quando eu li “positivo” eu senti que minha vida tinha acabado. Só eu sei o que isso significaria. Eu não acho que esse é o sentimento que se deveria ter ao colocar alguém no mundo. Pelo menos esse não é o sentimento que eu quero ter ao colocar alguém no mundo. Eu não estava preparada para ter um filho. Não estou. E não sei se algum dia estarei, sinceramente. E eu não acho que alguém, além de mim, possa decidir quando eu devo ou não ter um filho. Se eu devo ou não ficar 9 meses com um bebê dentro de mim. Esse é o meu corpo. Eu não deveria poder ter a decisão final sobre isso?

As consequências de um aborto só sabe quem já viveu. Mulher nenhuma faz um aborto como quem vai fazer uma cirurgia no dente. Mulher nenhuma vê o aborto como um método anticoncepcional. O aborto é uma solução. Mas uma solução que precisa existir como possibilidade legal para a mulher.

Apesar de ter certeza sobre minha decisão e não me arrepender dela nem por um momento, não há um dia sequer que eu não pense a respeito. Que eu não pense sobre a aceitação das pessoas que eu me importo a respeito da minha escolha.

Aborto é um tabu. Ainda. Eu conto nos dedos de uma mão as pessoas que eu escolhi compartilhar essa parte de mim. Infelizmente, muitos não aceitam essa escolha. E eu não estou falando de não concordar, estou falando de não aceitar.

Durante esse processo todo escutei que quem faz aborto “não lida com o problema de frente”, escutei que “não é certo”, que “não se deve contrariar as vontades de Deus”, que “na hora de transar não pensou nisso né”, que “não se cuidou, agora se vira”. É. Agora você é obrigada a gestar um bebê e cuidar dele pelo resto da sua vida, porque as pessoas acreditam ser “uma decisão de Deus”.

Não sou religiosa. E agora? Vivo de acordo com um dogma que não acredito?

Sou taxada de puta e sofro machismo por fazer o que o homem; o garanhão faz todos os dias – transar com quem eu quero e na hora que eu quero. As pessoas colocam a gravidez indesejada como nossa “punição” por ter poder de escolha. É tratar mulher como método de reprodução e só. Mais nada. Aonde já se viu, mulher gostar de sexo?

Isso tudo são opiniões. O problema mesmo é a opinião ou religião ter valor decisivo em uma lei, ter valor decisivo na liberdade da mulher de escolha do que fazer com o próprio corpo, ou até mesmo de constranger ou humilhar uma mulher em sua decisão. Liberdade de expressão é muito importante sim, mas até o ponto em que não tira o direito do outro.

Eu tive o que posso chamar de sorte de, junto com empréstimos de amigos, conseguir dinheiro suficiente para a cirurgia.

R$4.500,00 para um aborto em uma clínica confiável, pela curetragem – o método mais seguro, simples e eficaz – mas ainda assim, sem garantia nenhum de nada, afinal de contas, a lei não permite. Eu tive a sorte de poder escolher o que fazer, conseguir o dinheiro, conseguir um bom contato. Mas e as milhares de mulheres que não tem?

Ficar grávida quando você não quer estar grávida é desesperador. É desesperador ao ponto de uma mulher – até mesmo a mais racional – considerar fazer qualquer coisa para não continuar grávida. É procurar informações, e não achar nenhuma e é pensar que você vai ter que “dar um jeito”. É correr o risco, ainda por cima, de ser presa por querer ter o poder de decisão sobre o próprio corpo.

Uma mulher que quer abortar, vai abortar. Independente se você acha que é pecado. Ou se os pais nunca mais vão olhar para a cara dela. Ou se a vizinha acha que é “um chamado de Deus”.

Aquela mulher da periferia, ela vai encontrar outras formas, menos seguras, de realizar o aborto. E ela vai tentar. Porque ela não quer ser mãe naquele momento. E ela não vai ter amparo. E ela vai morrer tentando, se precisar.

O aborto é uma questão de saúde pública. Não de opinião.

Criminalizar o aborto não salva fetos. Criminalizar o aborto só mata mulheres