#clandestina17

26 anos, Brasília.

Agradeço muito pela presença de todas as mulheres feministas, ativistas, solidárias e amorosas que me educaram e acompanharam durante toda a minha vida: minha mãe, minhas irmãs, minhas amigas, minhas professoras. Sem elas, minha história seria muito diferente, certamente muito mais triste e muito mais parecida com a de milhões de outras mulheres no mundo inteiro.

Estava solteira há algum tempo, acostumada a fazer sexo casual: usar sempre camisinha, ficar de olho no calendário, escolher bem o parceiro, fazer exames periodicamente. Mas cuidar da própria vida sexual não é tarefa simples, e toda mulher sabe que, não importa quanto cuidado temos, quanta informação temos, ficar grávida é sempre um risco. E eu fiquei grávida de um rolinho de carnaval.

Primeiro o desespero: fazendo mestrado, escrevendo projeto pro doutorado, com todos os sonhos no futuro próximo, uma criança para criar sozinha era a última coisa com que eu conseguiria lidar. Nunca quis ser mãe, e as mulheres maravilhosas que me cercam sempre me apoiaram até mesmo nisso: o que, para mim, parecia uma atrocidade, elas explicaram que era mais do que natural. “A maternidade não é obrigatória, muito menos deve ser uma punição”, me dizia uma delas, desde muitos anos atrás.

Procurei primeiro por uma professora, minha melhor amiga e alguém que eu já sabia que havia feito aborto. Ela conversou comigo por horas, ouviu meus soluços e me confortou quando eu disse, no auge do desconsolo, que queria me matar. Ela sugeriu que eu conhecesse algumas de suas amigas de um grupo de pesquisa na universidade sobre o aborto. Nós nos encontramos em uma lanchonete e elas compartilharam comigo suas próprias histórias, além de alguns dos depoimentos que ouviram durante as pesquisas. Sempre histórias de mulheres que ajudaram mulheres a superar o preconceito, a culpa, a raiva e o abandono.

Além da minha professora, outra amiga me ouviu muito, me deu força e carinho, esteve comigo em todos os momentos. Eu decidi que não contaria nada nem pra minha família e nem para o rapaz com quem transei. As meninas do grupo de pesquisa me aconselharam a contar o que eu iria fazer para o mínimo de pessoas possível, sabendo que ainda era um crime e que as pessoas tendem a ser muito maldosas, a julgarem e distorcerem os sentimentos das outras, mesmo aquelas que, aparentemente, fossem suportivas. Ouvi muitas histórias de gente que se dizia super feminista, a favor dos direitos reprodutivos, mas que, na hora de apoiar uma situação real, se tornavam o que eram, de fato: conservadoras, misóginas, odiosas e julgadoras. Decidi que tentaria manter este segredo para o mínimo de pessoas possível, somente para as pessoas das quais eu tinha certeza que receberia suporte e amor.

As meninas do grupo de pesquisa foram muito carinhosas e suportivas: procuraram pelo remédio, compraram para mim e separaram um final de semana no apartamento de uma delas para eu ficar à vontade. Minha irmã me emprestou a carteirinha do plano de saúde, embora eu não tivesse dito para ela o porquê. Mas acho que ela sabia. Peguei o remédio, paguei para a garota os R$300,00 pelos quatro comprimidos de Cytotec, peguei a chave do apartamento dela e a carteirinha do plano de saúde, tudo no período de uns três dias. Em uma noite de domingo, fomos minha amiga, eu, uma pizza e uns refrigerantes passar por algo que conhecíamos só de teoria.

Tomei dois comprimidos e inseri os outros dois, eram umas dez da noite. Ficamos papeando e depois eu fui dormir, com a ajuda de seis gotas de Rivotril. Lá pra umas 4 da manhã, senti muito enjoo e muita cólica. Corri para o banheiro, vomitei, tive diarreia e muito sangramento. A dor da cólica me impediu de dormir, mas não foi tanta quanto eu imaginava, quanto eu ouvi nas histórias, quanto eu pensava que seria a “punição” pelo “pecado” que eu estava cometendo. Sim, apesar de todo o esclarecimento, o apoio e o amor, o fantasma da culpa cristã patriarcal ainda não me abandonou de completo. Ainda não, mas vai.

Quando estava quase amanhecendo, fui novamente ao banheiro e senti como se fosse um grande coágulo saindo de mim. Olhei e não consegui identificar nada, era algo disforme e vermelho, mas eu senti que fosse o feto. A cólica diminuíra e nós fomos ao hospital. Mesmo sendo um grande hospital particular da capital do país, demorou mais de 12 horas para que os médicos decidissem pela curetagem. Para suas perguntas, fui evasiva, sabia que estava fazendo “coisas erradas” demais, não queria ver seus olhares e nem me sentir ainda mais culpada.

A cirurgia foi marcada para as dez da noite de segunda-feira. Fui internada para aguardar, eles me deram jantar e me levaram para o centro cirúrgico em uma cadeira de rodas. Lá, todos me trataram muito normalmente, como se eu estivesse lá para retirar o siso. Me despiram, me prepararam para a cirurgia. A médica me explicou o que seria feito, respondeu com calma e sorrisos às minhas perguntas. O anestesista fez algumas gracinhas, disse para eu não ficar nervosa com a anestesia, eu não tinha qualquer dúvida e estava me sentindo muito bem. Depois da anestesia, só me lembro de acordar com um cobertor muito quentinho e com as mãos da minha professora, com ela falando “você foi muito bem, já está tudo terminado”. Ela dormiu comigo na internação, e eu sairia de lá pela manhã.

Quando a médica veio para me dar as últimas recomendações, eu procurei em mim mesma se estava algo diferente, se eu estava me sentindo culpada, como uma assassina ou qualquer coisa assim. Mas eu não estava. Só o que conseguia pensar era “que alívio! Eu sou mesmo uma pessoa de muita sorte!”. Minha amiga foi me buscar na internação e nós fizemos um “mini ritual de bruxa” para nos livrarmos das evidências. Rasgamos todos os exames e tocamos fogo em tudo. Se eu quisesse, poderia dizer para mim que aquilo nunca acontecera e viver minha vida normalmente.

Mas aquilo acontecera. Eu fiz um aborto. E sou realmente uma pessoa de muita sorte. Tive sorte de poder ser uma mulher negra, feminista, acadêmica, moradora de uma cidade rica, privilegiada por tanta ajuda e tanta informação num dos momentos mais apavorantes da minha vida. Isto porque, antes de tudo acontecer, as velhas cenas de torturas e barbáries passaram pela minha cabeça mil vezes. Imaginei instrumentos rudimentares, açougueiros, policiais, dores insuportáveis e por aí vai. Já senti na pele o que tantas mulheres antes de mim sentiram, e por isso foi tão fácil sentir também o que era só história e fantasia. E não precisei sentir na pele também isso.

Espero que esta história possa ajudar alguma outra mulher que esteja face a esta decisão tão difícil, tão importante e tão íntima: sua própria vida reprodutiva. Só você pode decidir, mas merece a ajuda de todas as pessoas que ama para decidir. Ainda não podemos contar com a ajuda de todas as pessoas do mundo, mas temos umas às outras para isso. Continuamos em luta para que todas as mulheres brasileiras possam ter o que eu tive.

Sou clandestina.