#clandestina16

19 anos, São Paulo.

Eu engravidei com 19 anos por falta de métodos contraceptivos. Foi em 2007, eu namorava há 2 anos e cursava as primeiras aulas do curso de História da Universidade de São Paulo. Tinha passado um ano inteiro me dedicando ao sonho de cursar uma universidade pública de qualidade. E nem me passou pela cabeça jogar tudo para o alto por causa de uma gravidez indesejada.

Na época, eu marcava as datas da menstruação em um calendário, e logo nos primeiros dias de atraso eu já comprei um teste de farmácia. Levei para o trabalho e pedi para uma colega me acompanhar ao banheiro. O resultado foi positivo. Comprei um segundo teste no mesmo dia. Positivo novamente. Então começaria uma corrida contra o tempo para descobrir uma forma de fazer o aborto. Em momento nenhum passou pela minha cabeça a hipótese de manter a gravidez. Eu tinha certeza que optaria pelo aborto desde o princípio. O meu namorado disse que me apoiava na minha decisão, mas hoje vejo que essa foi apenas uma forma de ele não se comprometer com a situação. De qualquer forma, eu sabia que aquela decisão era somente minha. Era a minha escolha e não dependia de mais ninguém.

Pesquisei como comprar Cytotec pela internet, mas fiquei com medo de fazer sozinha e não funcionar. Descobri com uma colega o telefone de uma enfermeira que fazia o procedimento em sua casa, na periferia da zona sul de São Paulo. Ficou combinado que no sábado daquela mesma semana eu faria o aborto por algo em torno de R$ 500,00. Na manhã do sábado, fui até o hospital do convênio e passei no pronto socorro ginecológico. Inventei a história de que estava grávida e durante a noite tive sangramentos. Eu precisava ter certeza da minha situação. Fiz exame de toque, ultrassom intravaginal e exame de sangue. Todos confirmaram o que eu já sabia. O intravaginal me mostrou no televisor o conjunto de células, uma bolinha, um coágulo. Estava de 5 semanas. Nem por um minuto me senti materna, gestante, grávida.

À noite, quem me acompanhou foi a mesma pessoa que me passou o contato da enfermeira. Meu namorado não poderia ir junto, pois a enfermeira tinha medo de ser denunciada pelos companheiros das mulheres. Mais uma vez, temos a situação: mulher ajuda mulher e o homem encarnado na figura do delator. Em uma casa muito simples, a enfermeira estendeu uma toalha de rosto encardida sobre a sua própria cama e pediu para que eu deitasse sem as calças. Ela introduziu o mesmo aparelho usado para fazer papa nicolau e  examinou com uma lanterna. “Seu útero está virado”, seja lá o que isso significava, estava doendo. Assim que o procedimento acabou, eu comecei a vomitar. Ela me receitou dois remédios, um para vômito e outro para dor. Meu namorado, que esperava no estacionamento de um supermercado próximo, me levou para casa.

Passei a noite com muita hemorragia, muita dor, uma cólica forte e não parava de vomitar. Disse para o meu pai que não passava de uma cólica menstrual. Ligava para o meu namorado de hora em hora, dizendo o quanto estava sofrendo e pedindo para que, assim que amanhecesse, ele fosse pra minha casa. Umas 6 horas da manhã, finalmente peguei no sono. Quando acordei, ao meio-dia, estava sozinha em casa. Liguei para o meu namorado e ele estava jogando futebol. “Eu estou muito estressado, muita coisa acontecendo, precisei relaxar”. Nessa hora, eu tive certeza absoluta que eu tinha feito a coisa certa.

Com o passar do tempo, veio o sofrimento. Não por remorso ou arrependimento. Jamais. Veio o sofrimento do silêncio. A proibição em falar sobre o aborto que eu fiz me colocava o peso da criminalidade. “Eu não sou uma criminosa! Eu não fiz nada de errado”, eu tentava pensar. Foi quando eu descobri que poderia usar a minha experiência como bandeira pela legalização do aborto. E passar a falar abertamente sobre a minha história foi incrivelmente libertador! Hoje conto isso nos coletivos feministas que participo, conto para colegas de trabalho, de faculdade. Eu não fiz nada de errado! Eu não preciso me esconder! Eu não sou uma criminosa!

Hoje, já sou formada, realizei meu sonho de morar sozinha, tenho uma vida independente. Eu fiz as minhas escolhas. Quantas mulheres abandonaram estudo, carreira, por uma gravidez indesejada?! Temos que ter consciência que são as mulheres que vão sofrer as maiores consequências na decisão de levar uma gravidez adiante. São elas, exclusivamente, que vão abrir mão da sua individualidade e de seus planos. Às vezes, penso, sim, em ter filhos. Mas isso irá acontecer somente quando eu quiser.

Sou clandestina, mas luto para que todas as mulheres saiam da clandestinidade. Nem uma mulher a menos! Pela vida das mulheres!