#clandestina18

19  e 30 anos, Rio de Janeiro.

Tive duas experiências significativas. Na primeira, eu estava com 19 anos e muitos planos para a vida: ser independente, namorar, trabalhar, estudar, viajar pelo mundo.  Conheci um rapaz que vivia bem distante da minha cidade, mas que era cativante. Um dia ele me falou que tinha um problema de saúde e não poderia ter filhos. Aos 19 anos, menina como eu era, acreditava em tudo. Um tempinho depois, meus seios cresciam doloridos, senti algo estranho no ar…      

“- Comigo não vai acontecer…” – pensava.  Um dia, fui a uma atividade relacionada ao estágio que fazia. Era um encontro acadêmico feminista – como eu me identificava com tudo aquilo!!! Dentre várias palestras e grupos de trabalho, falava-se sobre os direitos reprodutivos das mulheres.  Ao sair de lá, no ônibus, ouvi uma mãe cantando para seu filho um acalanto. Ali eu entendi o que estava acontecendo comigo.

Na época, era recém-saída de uma religião reencarnacionista que condena severamente o aborto e acreditava em influências espirituais que sopravam em meu ouvido minha condição de grávida. Era um enorme conflito! Comprei o teste de farmácia e o resultado foi positivo. Foi uma gravidez não planejada, mas que vinha de um desejo enorme de me tornar mulher. E o que nos é ensinado para que sejamos uma mulher completa?  É a maternidade…

Liguei para o rapaz dizendo que não seguiria adiante com a gestação. Contei para minha mãe, que apenas disse que me apoiaria em qualquer decisão.  Ela me contou de outras mulheres próximas que já haviam interrompido a gravidez. Eram muitas! Amigas, parentes, até mesmo minha avó!

Naquela semana, mobilizei uma amiga, que conhecia uma clínica clandestina. Sempre há aquela “amiga da amiga” que sabe!!  Combinei tudo por telefone, minha mãe inventou uma história para juntar aquela quantia, na época 900 reais, e foi comigo. Era um local limpo, com pessoas atenciosas. Entregávamos o dinheiro, entrávamos em outra sala onde deveríamos tirar a roupa e chegávamos à mesa que realizava o procedimento.

Me deitei e comecei a chorar. Chorei copiosamente, até que o médico e a enfermeira recomendaram que eu voltasse para casa e repensasse. Era um atendimento tão humanizado!! Saí com minha mãe e fomos para um bosque. Ela apenas me abraçava.  Resolvi levar adiante essa gestação e tive um filho.

Este relacionamento terminou quando meu filho já estava com cerca de um ano de idade.  Continuei a estudar e trabalhar, mas tive total apoio de minha família. Namorei outros rapazes e, quando meu filho estava com 5 anos, me casei.

Mais 5 anos se passaram.  Engravidei pela segunda vez aos 30 anos, dessa vez, do meu marido. Sem planejamento nenhum, simplesmente houve um dia que não usamos preservativo. E nesse dia eu engravidei. Semanas antes eu tinha ido ao médico e feito um ultrassom que identificou que eu estava com síndrome do ovário policístico. Quando voltei ao médico, desconfiada da gravidez, ele disse que isso era improvável devido ao meu diagnóstico. Disse que as mulheres com isso não engravidam facilmente. Mas eu estava lá, grávida.

Com um filho crescido e por tê-lo criado sem pai, sei exatamente de todas as dificuldades que um filho não planejado traz. Amo muito meu garoto, mas a história dele foi a dele.  Aos 30 anos, eu não poderia novamente passar por uma gravidez não planejada. Os planos que tenho de mudar de cidade, a instabilidade no trabalho, não ter mais uma rede de apoio pelo fato de muitos familiares terem falecido, tudo isso eu pensei para tomar minha decisão.

Dessa vez, foi mais difícil buscar uma referência. Não queria telefonar para uma grande amiga que havia pouco que interrompera uma gravidez para não deixá-la triste. Busquei outra amiga, que morava em outra cidade, mas tinha muitos contatos. Ao fim de alguns dias, ambas me ajudaram e trouxeram números.  E informações de mais e mais mulheres que conheciam que haviam interrompido voluntariamente a gravidez. Na altura, o procedimento custava 1600 reais.

Fui com meu marido ao endereço da clínica clandestina que todas-sabem-onde-é.  A polícia fazia rondas na hora que chegamos. O bar da rua estava cheio de homens que aguardavam suas mulheres, namoradas, amigas e amantes que já estavam lá dentro.  Entrei e também tive medo dessa vez. Havia uma fila muito grande. Mulheres de todas as idades e com as mais diversas histórias.  Tive medo de ver tantas mulheres lá dentro desamparadas. Em dúvida. Culpadas. Criminalizadas. Endividadas. Tive medo de usarem instrumentos cirúrgicos não esterilizados. Tive muito medo.

Horas depois, na minha vez, pedi apenas que me dopassem. Eu queria ficar insensível ao grito que todas nós estávamos dando ali dentro daquela clínica. Passei muito mal nos dias seguintes, mas continuava com medo de ser julgada, criminalizada. Suportei minha dor sozinha. Estava tão mal que tomei a dosagem errada dos medicamentos indicados no pós-A.M.I.U.

Agora estou fazendo tratamento para o ovário policístico. Não sinto culpa de ter interrompido aquela gravidez, ao contrário, estou aliviada por, neste momento, não me ver envolta de fraldas e demandas com as quais não posso arcar. Ainda não me sinto preparada para ter outro filho. Mas um dia, quem sabe?

Hoje uma amiga me procurou. Pediu contatos da clínica, novamente para “uma amiga de uma amiga”. Fiquei muito feliz por poder oferecer isso. Mas quero oferecer muito mais. Quero indicar um hospital público, um médico confiável, legalizado e atencioso. Quero oferecer minha palavra publicamente, para que todos saibam que decisões como essa podem perpassar a vida de qualquer mulher, independente de sua cor, escolaridade, idade, condição social ou estado civil.