#clandestina58

30 anos, branca

Ah, os privilégios. Não poderia começar esse texto sem antes listá-los. Sou branca, 30 anos, filha da classe média, já viajei pra Europa, faço pós-graduação em universidade pública. Hoje vivo bem com dois salários mínimos, sozinha. Meu companheiro tem o mesmo histórico. Meu aborto foi tranquilo, um privilégio, um privilégio que se virasse uma lei LOGO seria um DIREITO de todas as mulheres! Era só pegar no SUS!

De maneiras das menos ortodoxas possíveis (hoje a dá pra dar risada) descobri que estava grávida, tudo indicava que era muito recente, coisa de 2-3 semanas. No dia seguinte encontrei meu companheiro e permanecemos juntos uma semana pensando o que faríamos. Poderíamos ter. As famílias apoiariam, seria sempre aquela história do “é um amor enorme que nasce e te dá forças para tal e tal e tal”, “as coisas acontecem e a gente só entende depois”. Mas graças a poucas amigas mães que são honestas quanto a maternidade tinha também os “amo meu filho, mas ser mãe é f*da!”, “se dê a chance de finalizar seus projetos antes disso”. Foi então que a oportunidade absurdamente acessível de tomar um remédio seguro para o aborto me apareceu.

Em países onde o aborto é legalizado, até a 9ª semana de gestação é possível tomar uma combinação de remédios que induzem o aborto. É assim: você faz o teste, confirma o tempo de gestação, vai no médico e diz SEM MEDO: quero interromper a gravidez, obrigada. O médico te passa a receita, você vai na farmácia compra os remédios e vai para a segurança do seu lar. Toma os remédios e aguarda acontecer. Volta pra uma consulta ver se tá tudo bem, tá, segue sua vida. Tá difícil lidar? Vamos passar ali na psicóloga pra gente desabafar. É um procedimento de cuidado com a vida, a vida da mãe. Os remédios utilizados são indicados pela Organização Mundial da Saúde no relatório de aborto seguro que fizeram recentemente. (https://womenhelp.org/pt/)

Depois de o que pareceu uma eternidade pensando no que faríamos, de maneira muito tranquila entramos no acordo de que não era a hora, e tínhamos a opção de um aborto seguro. Resolvemos então comprar esse kit de remédios. Custou R$500 reais. Tomei a primeira dose, um comprimido de mifepristona, que interrompe a gravidez, sem sintomas, nada aconteceu comigo. 24 horas depois a segunda dose começou foram 4 comprimidos de misoprostol (é a substância do cytotec), depois de uma hora mais ou menos senti algumas cólicas, comecei a sangrar. Foi como se minha menstruação começasse. Aquela cólica chata, insistente, as vezes mais forte…

Deitei e descansei, adormeci, acordei no dia seguinte e com muita insegurança quis ir ao médico. Falei que estava gravida porem com sangramentos e cólicas, não falei nada sobre ter tomado os remédios, ele me pediu um ultrassom que afirmou que havia ainda um pequeno embriãozinho de 3-4 semanas. Voltamos para a casa e a insegurança nos levou a tomar a decisão de tomarmos mais uma dose de misoprostol, não era necessário, mas naquele momento parecia a melhor ideia, se o aborto não acontecesse, como seria a criança? Bateu um leve desespero. Tomei a terceira dose e adormeci, não senti cólicas nem aumentou o sangramento, continuava como uma menstruação normal. Voltamos no médico e ele afirmou que poderia ser um aborto, eu saberia nos próximos dias. As cólicas ficaram mais fortes no dia seguinte e expeli alguns tecidos, como uma pequena bolsa, muito pequenina, nem 10 centímetros. O sangramento passou a enfraquecer e assim seguiu por mais uns 7 dias até parar. Fiz uma viagem no meio do processo todo e foi muito tranquilo.

Não foi um momento, tomei uma pílula e sangrei loucamente, todo o medo. Foi um processo, meu medo vinha de não entender isso e achar que não tava dando certo, foram alguns dias pro meu corpo desengravidar, os remédios dão o pontapé e seu corpo faz o resto. Não tive traumas psicológicos, pois tive amigas, amigos e um companheiro que me apoiaram muito. Imagina se pudesse ser com orientação médica e de graça!

Minha vontade é sair gritando por aí que aborto pode ser seguro, pode ser sem traumas, sem culpa, uma escolha… NADA SIMPLES! Só eu sei os 7 dias que pensei e sonhei incansavelmente essa situação, pra chegar na minha decisão. Mas foi minha escolha. Poderia ser a de todas as outras mulheres…
Lutemos por isso!

Sou a favor da legalização porque a criminalização é uma hipocrisia. Um aborto tratado de forma ética, com orientação médica e psicológica é uma demonstração de amor a vida maior que qualquer outra. Se uma mãe não deseja um filho, ela não deve ser obrigada a tê-lo! Isso é uma violência à vida dela e à vida da criança!