#clandestina09

20  e 22 anos.

Eu tenho dois relatos a serem feitos, acredito que os dois têm extrema relevância, na minha vida e, posteriormente, na de muitas mulheres. São histórias complementares sobre como ser clandestina pode ser perigoso ou tranquilo, dependendo de quais são suas informações e da busca por outras clandestinas que possam lhe ajudar,  e muito, a ter mais segurança e certezas sobre sua escolha.

Aos 20 anos, eu tomava anticoncepcional, tinha uma relação afetiva/ amorosa estável com um parceiro de mais de um ano. Tudo que socialmente seria aceitável para a construção de uma família, dentro dos ideais aprendidos na periferia em que vivo. A ordem “natural” estava dada. No entanto, ao me deparar com essa gestação inesperada e indesejável, me vi pressionada a tomar uma decisão entre acreditar e intervir no meu futuro ou tornar-me a reprodução da história familiar de que eu era fruto.

Faculdade, trabalho informal, sonhos e investimentos pessoais deveriam então ser abandonados para que a tão “sonhada realização” da maternidade se concluísse. Esses padrões de felicidade e realização nunca couberam nas minhas roupas e no meu corpo.

Dentro da cabine no banheiro do shopping, diante de um teste de gravidez positivo, meu primeiro pensamento foi claro: preciso resolver esse problema. Não me pareceu uma benção ou uma sinal divino falando para eu mudar a minha vida, e sim um problema a ser resolvido.

Como resolver isso sem criar alardes? Quanto será que custa para resolver esse problema? Aonde devo ir? Com quem eu posso contar? Será que, se eu contar pra ele, ele vai ser contra eu resolver isso? Será que ele vai poder me ajudar? Como vou fazer isso sem minha mãe saber? Será que é perigoso?

Tantas, mas tantas perguntas que o problema tomou conta de todos os meus pensamentos e pesquisas na minha vida.

Aquele que era o progenitor, que era meu parceiro, ficou com medo de tantas perguntas que não sabia responder. Mesmo assim, não me reprovou. No entanto, se colocou apenas como um financiador – se o valor não fosse muito alto -, mas que eu fizesse tudo sozinha, pois não queria grande participação.

Com algumas pesquisas na internet (ainda bem que eu tinha acesso a ela) consegui informações sobre que remédio tomar, como tomar e até de como comprar. Mas ainda muito acima das minhas possibilidades.

A primeira tentativa foi frustrada, pois fui ROUBADA. Sim, fui roubada pelo cara que me venderia: ele pediu parte adiantado e, como eu estava muito nervosa e sozinha, já que o
companheiro e também responsável resolveu não ir, o desespero tomou conta.

Então, uma amiga que já tinha passado pela mesma situação me indicou um lugar para comprar clandestinamente. Nessa segunda tentativa, comprei com uma outra mulher que, muito desconfiada, fez dezenas de perguntas e deu poucas respostas. Após passar por três pessoas diferentes, indicadas por ela, e dar a volta na região central, conseguimos comprar.

No dia que resolvi tomar o medicamento, achei que tinha ocorrido tudo bem. Na verdade, não sabia direito como seria, e achei que tinha mesmo ocorrido tudo bem. No entanto, eu fiquei com o aborto retido, que só foi descoberto após um mês. Fui parar no hospital com hemorragia.

O trajeto não foi fácil. Ninguém poderia saber o que estava acontecendo, então atravessei a cidade tendo um sangramento enorme e quase desfalecendo de dor. Fui levada em uma viatura da polícia, pois eu não aguentava andar. Estava com medo de morrer. Já fazia mais de três horas que eu estava sangrando sem parar, e o sangramento foi aumentando, conforme as contrações aumentavam.

Vocês devem se perguntar agora: e onde estava esse companheiro?

Sim, ele estava lá para me levar ao hospital. Encontrei-o do outro lado da cidade, após quase duas horas que tinha saído da minha casa. Ele chamou a viatura para me levar para o hospital, já que eu não conseguia andar e ele não conseguia me carregar, e assim fui internada. Lembro de pouca coisa, pois logo desmaiei de dor.

Após essa internação e dez dias de repouso absoluto, a relação com o tal companheiro degringolou, por conta das mágoas e da culpa cristã, fator que faz com que tantas mulheres sofram muito pela escolha realizada.

O segundo relato se passa de forma mais que contrária. Eu tinha 22 anos, felizmente encontrei um grupo de apoio que me ouviu e tirou todas as minhas dúvidas sobre a maneira mais segura de comprar, usar, prós e contras, etc… Recebi apoio de dois amigos na realização, o que foi fundamental para o sentimento de segurança e para a ausência do sentimento de culpa.

Encontrei nesse grupo de mulheres todo o apoio, na rapidez que eu precisei. Nesse segundo caso, o homem foi uma figura ainda mais ausente. O rapaz não tinha uma relação comigo, foi uma paixão dessas em que se perde todos os medos e sentidos do consequencial.

Fato esse, que facilitou a decisão muito mais rápida. O sentimento de segurança, a informação e o acompanhamento de responsáveis é o mais importante, é o que torna as coisas mais fáceis, sem sentimento de culpa, sem precisar se humilhar a setores que repreendem sua decisão. Ocorreu tudo bem, com a tranquilidade e a atenção necessárias.

Sou clandestina, gostaria de não ter sido Gostaria de que fosse compreendido que a MULHER é mais importante que o feto.

Uma mulher pode geral inúmeros fetos, mas um feto não desejado, só como feto, não gera nada além de dor, rejeição, traumas e infelicidade.