#clandestina02

23 anos, São Paulo.
Em resumo, sou clandestina porque transei, engravidei, não queria ser mãe e abortei. Em uma clínica segura e cara. Eu tinha 23 anos. Eu estava no metrô quando me dei conta que já deveria ter ficado menstruada há uns 3 dias. E logo fiz as contas de quando o meu ex-namorado tinha vindo pra São Paulo. Bingo.
A gente não namorava mais, mas naqueles dias acabou rolando. E foi sem camisinha.
Falei com ele só pra avisar da situação e que manteria informado caso minha suspeita se confirmasse. Mas já adiantei que ser mãe naquele momento não chegava nem perto de ser uma possibilidade.
Falei com uma amiga. Ela comprou o teste pra mim. Eu fiz e deu positivo. Eu chorei. Me senti uma boba por não ter usado camisinha. E a verdade é que muitas vezes a gente não usava camisinha. Me senti vulnerável.
Mas não estava sozinha, fiz tudo sem segredo e contando com muita solidariedade. De várias mulheres, de alguns homens.
Eu ia viajar no dia seguinte e pedi pra minha amiga marcar a consulta pra mim. Quando voltei, ela foi lá comigo.
2500 reais. Mais do que eu ganhava. Menos do que ele ganhava.
Eu propus que ele pagasse mais, afinal de contas era no meu corpo e ele não deve ter tido 1% da preocupação que eu tive com a anestesia, com encaixar um horário numa agenda que estava repleta de viagens e trabalho, com o dinheiro todo da minha poupança que foi embora e eu não pude viajar. (e eu já disse que ele ganhava mais, né?).
Mas nós dividimos igual.
Foi a transa mais cara da minha vida, e não chegou nem perto de ser a melhor delas. Fui muito bem tratada durante todo o processo. Me incomodou saber que eu paguei pra ser respeitada, não só porque a maioria das mulheres não tem condição de pagar por isso, mas porque respeito deveria ser gratuito, um direito universal e uma prática.

A enfermeira chegou pra me levar pra sala de cirurgia e para pegar o dinheiro. Minha amiga complementou a grana, porque meu limite de saque não dava conta da conta.

Entrei na sala, o anestesista lançou uma injeção, disse que eu ficaria um pouco zonza, “uma sensação de ressaca”. Acordei em uma cama confortável, em um quarto individual e com um lanchinho.

Uma amiga tinha me falado que eu acordaria um pouco confusa, mas que era comum quando se toma anestesia e que eu não precisava noiar com isso. Outra amiga, também clandestina, estava lá do meu lado.
A sensação não foi de confusão, foi só alívio.
Passei pra falar com o médico, que disse que tudo tinha corrido bem e sugeriu que eu não transasse nos próximos dias. Disse que meu corpo ainda estava “grávido” por conta dos hormônios e que eu não deveria fazer nenhum teste de gravidez porque daria positivo.
Me deu o telefone pessoal dele caso eu tivesse algum problema, e disse que eu poderia voltar lá depois de uma semana pra ver se tava tudo bem.
Sim. Aborto com direito a consulta de retorno pra assegurar que está tudo bem. Que você não ficou com sequelas. Que se um dia decidir engravidar não terá nenhum problema.
É só isso que a gente quer.
***
Minha família não sabe que eu fiz o aborto, mas não é por ser segredo e sim porque nenhum deles nunca me perguntou. Falo sobre o assunto pra pessoas que eu conheço e não conheço e que estão na mesma situação, mas inseguras, porque não tem informações confiáveis e acessíveis por aí.
Quando me chamaram de assassina eu não me incomodei, porque não sou.
Mas me incomoda cada vez que uma menina não tem como juntar dinheiro pra garantir o aborto nesta clínica limpa, respeitosa e segura. Ou cada vez que os meninos somem, ou não ajudam, ou pressionam a menina a tomar uma atitude que não é a decisão dela. Ou quando elas decidem ter o filho e eles acham que só precisam dar um dinheirinho pra sustentar, enquanto elas passam a ter o tempo e a vida dedicado a criar uma nova pessoa.
Mais ainda, me incomoda saber que tanta gente sabe de toda essa hipocrisia e se acomoda enquanto o conservadorismo nada de braçada pra controlar os nossos corpos e a nossa vida.