#clandestina40

Sou mulher preta, tenho 21 anos, estudante, solteira, sem filhos, estagiária de equipamento cultural, residente do extremo da zona sul, mais precisamente no bairro de Americanópolis. Difícil relatar algo tão recente e tão marcante na minha vida. Numa tarde, depois de observar o meu ciclo e algumas alterações no meu corpo como seios doloridos, cólicas, inchaço, que até então achava que eram sintomas de uma menstruação normal, resolvi fazer o teste de farmácia, mesmo sabendo que a probabilidade de exatidão não era garantida.

Um soco no estômago, o que era para ser um alívio, acabou se confirmando em positivo. Como algo desse tipo poderia acontecer justamente comigo? Uma das minhas primeiras reações foi pensar com que eu poderia contar, já que anteriormente, tinha pensado na possibilidade de aborto e estava decidida sobre. Contei para minha melhor amiga, estudante de Serviço Social, envolvida com causas feministas e que pode me ajudar.

Contei para o cara, uma pessoa que mora em outro estado e estava no início de um envolvimento, ou seja, não tínhamos algo consolidado. Os dois ficaram em choque, como já era de se esperar. Meu autocontrole foi importante, apesar de desesperada, eu tentei manter a calma e pensar em como poderia articular o mais rápido possível para que eu pudesse abortar.

O cara apoiou na minha decisão, uma vez que já havia chegado com a intenção de não ter. Vejo que, apesar de ter falado que se eu quisesse ter também assumiria, é uma posição confortável, uma vez que quem realmente passou por todo o processo de constrangimento, dor, correu risco fui eu.

Foi importante ter o auxílio de uma mulher, preta, de luta que poderia entender o que eu estava passando. Ressalto que como é algo muito delicado, resolvi contar apenas para as pessoas que eu confiava muito e que poderiam me ajudar de alguma forma e mesmo depois que passou tento manter sigilo. Eu tive contato com debates feministas principalmente na Universidade e por já ter tido proximidades com garotas que passaram pelo mesmo, já conhecia alguns métodos para interromper a gravidez indesejada.

Pensei em comprar o medicamento no centro da cidade, já que era a única alternativa que eu conhecia, mas ao mesmo tempo tive um grande receio, pois uma pessoa próxima havia passado pelo mesmo caso, teve grandes transtornos psicológicos e não abortou, ou seja, o remédio foi ineficaz. Felizmente pude contar com a ajuda de mulheres feministas conscientes que me deram apoio emocional e orientações de como eu poderia realizá-lo sem correr sérios riscos de vida.

Uma das coisas mais assustadoras que aconteceu durante todo o processo, foi o tratamento que recebi dentro de uma UBS, quando fui fazer o teste paras confirmação da gravidez. Após a confirmação iniciou um questionário medonho que incluía se era uma gravidez desejada, quanto tempo eu estava com o pai da criança, se tinha sido só um lance, e sim fui fazer sozinha o teste que acabou me apavorando de uma forma que parecia que eu não teria mais saída, que eu era obrigada a ter aquela “criança”.

Foi importante poder contar com algumas pessoas, acho que sem elas eu não conseguiria ter estrutura emocional para realizar. Apesar de conhecer pouco o cara e de ele estar longe, foi uma pessoa que segurou a barra junto comigo e que estava praticamente 24 horas conectado a mim, uma vez que nessas situações parece que nada mais importa, que as coisas viram de cabeça pra baixo e que o único desejo é um suspiro de alívio de não ter mais aquilo dentro de si.

Decidi não contar para a minha mãe apesar de ser próxima a mim, pela moral cristão ela não fica à vontade para debater certos assuntos, isso envolve sexo, e fiquei com medo de que ela me convencesse a ter esse “bebê”.

Quando tudo acabou, pude contar para ela, por mais difícil que pareceu, ela me apoiou, não me julgou e me orientou se oferecendo para ir ao ginecologista comigo. Para realizar o aborto consegui o contato de duas mulheres através do movimento feminista que poderiam me orientar, tanto concedendo o remédio com procedência “legal”, quanto nas orientações de como tomar, o que poderia dar e como proceder posteriormente.

Fique muito ansiosa um dia antes e no dia, não sabia o que poderia acontecer. Tive sorte que uma amiga me cedeu a casa, também verifiquei se havia algum hospital por perto caso algo desse errado. Isso é importante pois me trouxe mais segurança do que eu estava fazendo.

Tive todos os efeitos colaterais possíveis, o que que eu já esperava e que foi acentuado pela ansiedade. Não sangrei tanto quanto esperava e por isso resolvi ir ao médico no dia seguinte, já que tinha sido orientada por uma enfermeira a fazer a curetagem, um procedimento que limpa a parede do útero a fim de evitar infecções do tecido morto.

Confesso que tive muito medo de ser discriminada dentro do hospital. Passei no Hospital Universitário da Zona Oeste e o tratamento foi melhor do que eu esperava. Fiquei internada por um dia, mas em nenhum momento houve um grande interrogatório se eu havia tomado algo para abortar, mas a todo momento eu esperava por uma abordagem desse tipo.

Atualmente, apesar de estar completando apenas um mês que passei por tudo isso, parece que aconteceu há um bom tempo. Talvez os danos psicológicos tenham feito eu recusar o que eu tenha sofrido a ponto de “ignorar” todos os efeitos que surtiram. Dentre umas coisas que pude observar é a necessidade de um acompanhamento terapêutico, nesses quase dois meses de sofrimento, perdi a vontade de sair, uma vez que sou superativa, nunca fiquei em casa, sempre estava envolvida com projetos, coletivos.

Desenvolvi alguns medos principalmente relacionados a perda. Talvez as alterações hormonais tenham causado um estado melancólico e até depressivo, mesmo tendo consciência da minha postura a favor do aborto, uma vez que o Estado não pode decidir o que acontece com o meu corpo. Estou em busca de ajuda psicológica.

Enfim, espero que o meu relado possa ajudar a mulheres que estejam passando pela mesma situação, não foi tão tranquilo, mas eu acho que se você puder contar com pessoas que possam te ajudar, ou até mesmo não se desesperar tanto, as coisas fluem melhor, o peso de si mesma sobre si é a maior culpa que pode carregar. Você não está só, clandestina!