#clandestina41

Isso é um relato. Relatos são sempre processos de entrega. Há tempos penso em escrever como foi para mim interromper a gravidez. Aproveitando a proximidade de mais um 28 de setembro – Dia Latino-americano e Caribenho pela Legalização e Descriminalização do Aborto, e a divulgação das duas mortes, de Jandira e Elisângela, entre as milhares, pensei que seria um bom momento para me dar o direito de usar a palavra e deixar de ser mais uma das milhões de clandestinas em silêncio.

A primeira coisa que fiz quando pensei em relatar meu aborto, foi me perguntar, “Por que contar?” E cheguei a conclusão que romper o silêncio sobre o que acontece com as mulheres que decidem abortar, é importante sim, que a maioria dos problemas vividos por nós é invisibilizado, e entre eles os processos relacionados aos abortos não assistidos certamente despontam. A segunda coisa foi procurar em quanto tempo o “crime de aborto provocado pela gestante” prescreve: oito anos. De imediato pensei “Só escrevo ano que vem… vou deixar rascunhado pelo menos. Não vou correr risco de ser criminalizada”. Mas ai futuquei na internet mais um pouquinho e descobri que quando realizado por menor de 21 anos o tempo de prescrição cai para metade… Respirei fundo. Uma mistura de alívio e direito sobre minha história…Ao menos posso falar com menos medo. Os relatos podem cair em psicologismos ou tornarem-se “estômago” demais. Se acontecer, peço desculpas prévias. Estou me dando o direito de não polir as palavras.

Tenho 27 anos e abortei em março de 2007, aos 20 anos. Dizer isso hoje, em 2014, sem chorar, sem ter medo dos julgamentos machistas e conversadores é recente. Durante esses sete anos participei de inúmeros debates, conversas e discussões sobre a legalização e descriminalização do aborto e muitas vezes cai no choro descontrolado, ou me meti em brigas que beiraram tapas e murros. Hoje, quando falam “assassina” ou qualquer coisa do tipo como “isso é tirar uma vida…” eu rebato com muita segurança, na maioria das vezes sem choro, mas nem todas sem um bom quebra-pau. A questão é que abortar me fez refletir pela primeira vez de forma profunda sobre o direito que tenho sobre meu corpo, o quão sério é ser mãe, sobre o exercício da nossa sexualidade diretamente atrelada a obrigação da maternidade e a necessidade de me organizar no movimento feminista.

No dia que peguei o exame de sangue com a confirmação da gravidez estava com um grupo de amigos, grupo esse que ficou pertinho de mim todo o tempo. Com o exame na mão, um deles perguntou. “O que você vai fazer? Vou ser titio!?” Na hora tive certeza. Não queria ser mãe naquele momento. E respondi veemente “Vou abortar ué!!!”

No imediato saímos de carro pelas ruas do centro de Salvador procurando o tal do remédio: Cytotec. Nossa ingenuidade hoje me faz rir. Entramos em farmácias “comuns” perguntando “Vende Cytotec?”, paramos em algumas feiras… perguntamos aos passantes: “você sabe onde podemos comprar Cytotec?”. Depois de uma série de nãos ríspidos e caras feias, fomos nos dando conta de que era muito mais difícil do que pensávamos.

Os dias foram passando e não encontrávamos o remédio. Eu e meu companheiro à época começamos a pensar em outras alternativas… “Tal pessoa disse que esse chá funciona”, “No hospital tal uma amiga disse que interrompem a gravidez”, “Na boca de tal bairro tem um genérico do Cytotec…”

Junto com a agonia dos dias tinha o enjoo e o vômito. Desde a hora que peguei o exame de sangue confirmando a gravidez comecei a vomitar. Nada ficava. Nem água. No meio dessa agonia fui acolhida na casa da família de uma amiga que esteve comigo durante todo o processo, ela, seu companheiro, sua irmã e o companheiro, sua mãe, padrasto, todos acompanharam e me ajudaram muito. Fiquei lá por quase 10 dias, enquanto aguardava o Cytotec. Não tive coragem de compartilhar com minha família. Depois de alguns dias, esses amigos providenciaram que eu tomasse em casa soro intravenoso, além de todos os dias três injeções de plasil para tentar não vomitar e segurar alguma coisa no estômago. Foram dias muitíssimo fraca, sonolenta e com muito medo.

Quando conseguimos o Cytotec tomei 2 e coloquei 2 no colo do útero. Estava com seis semanas. Depois de algumas horas senti uma dor absurda, daquelas de perder os sentidos. Em instantes, sangue para todo lado…Não quis ir para o hospital por medo, tinha lido algumas histórias de que lá eles seguravam. No outro dia não tinha mais vômito e ganhei um pote de sorvete enorme! Os dias seguiram como se eu estivesse menstruada, com cólicas fortes, mas nada demais.

Decidi voltar as atividades. Estava no último ano da graduação em Artes Cênicas, no meio do processo de montagem do espetáculo de pré-formatura. Em um dia de ensaio aberto, na música da cena final comecei a ter uma hemorragia transvaginal. Assim que acabou o ensaio desci as escadas da Escola de Teatro correndo e quando cheguei ao banheiro estava ensopada de sangue. Nunca tinha visto tanto sangue. Escorria entre minhas pernas como uma torneira aberta. Comecei a chorar desesperada. Não tinha dinheiro. Não tinha plano de saúde (minha mãe estava tentando resolver o plano depois de uma ligação que fiz dizendo que estava com muita dor no estômago), e não queria mais importunar meus amigos. Sangrava e chorava. Até que alguém chamou minha amiga e começamos a peregrinação pelos hospitais de Salvador.

Primeiro fomos no Espanhol. Pagamos mais de 120 reais pela consulta. Enquanto eu estava no banheiro me trocando depois do atendimento, o médico conversou com minha amiga. Falou pra ela que eu precisava fazer urgente uma ultrassom e uma curetagem, que minha hemorragia estava muito forte, que eu podia estar com uma infecção grave e que corria risco de vida. Sai do banheiro ainda mais assustada, disse a ele que não tinha dinheiro. Lembro até hoje o que ele respondeu “Aqui você vai pagar cada passo que der. Você precisa de um remédio pra controlar a dor…e disso, isso, isso…”, e fez uma lista do que eu precisava fazer e dos hospitais que eu podia ser atendida.

Não tínhamos dinheiro, nem eu, nem meu companheiro, que no meio dessa agonia toda estava trabalhando. No Espanhol havíamos pagado com um chegue de Ana. Não tínhamos dinheiro nem para o táxi.

De ônibus, sangrando, seguimos para a Maternidade que fica no bairro de Brotas, eu estava cada vez mais fraca. No balcão de atendimento ouvimos que ali era lugar de nascer e não de morrer. Lembro que Ana enfrentava as atendentes. Passamos por alguns hospitais, foram horas de hemorragia. Em todos eles encontrei mulheres na mesma situação que a minha, muitas na verdade. Outras grávidas nas conversas perguntavam “você tirou foi?” E eu confirmava. Várias me diziam que tinham tirado uma vez, outra três vezes, muitas disseram ter agradecido a deus por conseguir engravidar de novo, elas temiam o castigo de não poder ser mãe…

Foram alguns atendimentos e neles muita humilhação. Era como se por ter abortado eu tivesse deixado de ser gente, era tratada como bicho… e o sangue escorrendo. Em um dos hospitais enfrentei um estudante de medicina que veio fazer minha anamnese (primeira entrevista) e começou a perguntar detalhes do meu aborto, onde achei o Cytotec, porque eu tinha feito isso, se eu sabia que era crime. Quando ele me disse “você sabia que eu posso chamar a polícia né?” levantei cambaleando, já estava sangrando há horas e xinguei ele todo. Sai mais forte, mas ao mesmo tempo não queria mais ir em hospital nenhum. Ligamos para um médico conhecido que indicou um remédio pra segurar a hemorragia. Mas teria que voltar no outro dia e fazer a curetagem. E no outro dia estava só. Minha amiga não podia ir comigo e eu não queria outra pessoa. Era tudo tão duro que eu só pensava: por que precisamos passar por isso? Por que tem que ser tão dolorido? Por que não tenho o direito de decidir?

 No outro dia fui sozinha na Climério de Oliveira, maternidade da UFBA, precisava apresentar uma ultrassom para ser atendida e a máquina de lá estava quebrada. A ultrassom na clínica mais próxima custava R$ 42. Eu tinha R$ 27. Chorei tanto no meio da rua, mas tanto…Chorava copiosamente. O medo de morrer, a falta de grana, a sensação de estar só no mundo. Voltei para casa e no outro dia fui com minha amiga na Climério, fiz a ultrassom e passamos o dia no hospital. Chegamos de manhãzinha, lembro que enquanto descansávamos na capela que fica dentro do Hospital, a hemorragia voltou e novamente o medo de morrer tomou conta de mim… só fui atendida quase 20h. Não tinha leito e os partos são prioridade. Quando fui examinada a médica disse que eu tinha perdido muito sangue, que não sabia como eu estava de pé, e que foi tanto sangue que nem precisava mais de curetagem. Me passou alguns remédios e fui pra casa. 

Fiquei meses muito mexida com tudo isso. O peso da criminalização e a ausência do Estado fazem tudo ser ainda mais difícil. Inclusive, estou optando por não dizer aqui como engravidei, se foi a camisinha que estourou, se foi um noite maravilhosa de sexo, se foi a pílula que falhou. Não importa. O que importa é que essas justificativas só fazem culpabilizar as mulheres. Por vezes ouço relatos: “Ahhhh! se foi a pílula que falhou dá pra entender…” Se seu moralismo aceita, posso ser menos demônia e assassina. Esqueçam. Não entrarei nesse mérito. E aconselho as mulheres que engravidam a não entrarem. Essa conversinha de “na hora de fazer foi gostoso, agora não quer aguentar as consequências” é pra mim tão bizarro quanto o “assassina”. Outra afirmação comum, e que me agrada um tanto mais, é ” Eu concordo em legalizar e descriminalizar porque é um problema de saúde pública”. Tornou-se de saúde pública, de fato. Mas mesmo que não tivesse se tornado problema de saúde pública, mesmo que deixe de ser essa carnificina que hoje é, continuará sendo direito da mulher decidir sobre seu corpo e sua vida. E outra coisa, eu passei por toda essa desgraça, mas o procedimento pode ser simples e seguro, como já é em muitos lugares, inclusive no Brasil, quando se tem dinheiro.

Dia desses, estava em um grupo de mulheres e nos demos conta que todas já tinham abortado, menos uma, que abortou meses depois, falávamos do assunto bem baixinho mesmo dentro de casa, como se fosse proibido. E de fato é. Somos todas clandestinas. Um quinto das mulheres brasileiras já abortou ou vai abortar, significa dizer que em cada família tem uma ou mais mulheres que abortaram, muitas dessas mulheres devem sentir culpa, devem sofrer e contar o tempo: “Se eu não tivesse abortado meu filho estaria com tantos anos”. A criminalização adoece as mulheres. O silêncio sobre esse assunto é mortificador. É preciso compreender que engravidar não é tornar-se mãe. Tornar-se mãe é uma decisão da mulher e não do estágio de formação do feto. Ser mãe é uma decisão muito séria, e não pode ser uma imposição porque tenho vida sexual ativa.

Estamos vivendo um momento na conjuntura de ataques cada vez mais sistemáticos aos direitos das mulheres, a portaria que tentava garantir o procedimento da interrupção da gravidez nos casos garantidos por lei em todos os hospitais da rede SUS foi recentemente derrubada, a aberração do Estatuto do nascituro está em tramitação, estamos cada vez mais tendo que afirmar que somos gente, tentando garantir que os direitos adquiridos não nos sejam retirados, e que o que está em jogo é a vida de um ser humano constituído, a mulher!

O controle sobre os corpos das mulheres é datado historicamente, é parte da estrutura de dominação, opressão e exploração a qual estamos submetidas. E o que a gente pode fazer pra reverter isso tudo e enfrentar aqueles que querem cada vez mais o controle social da função reprodutiva das mulheres? O que fazer para que as mulheres não tenham que passar pelo que passei, pelo que Jandira, Elisângela, e tantas outras mulheres que na ausência de direitos utiliza métodos precários para interromper a gravidez, o que podemos fazer para que nenhuma mulher morra na fila dos hospitais, que nenhuma mulher seja mãe por obrigação. A única coisa que me vem a cabeça é a organização. Só as mulheres organizadas podem enfrentar essa barbárie, é preciso que cuidemos umas das outras, longe estamos de ser livres, é verdade, a clareza do quão distante ainda está a liberdade me faz todos os dias ter mais certeza que é preciso mais do que nunca seguirmos organizadas. Ombro a ombro, em marcha, até que todas sejamos livres!