#clandestina69

Branca, 30 anos, Rio de Janeiro.

Percebi que havia alguma coisa diferente no meu corpo (odores, vontades, humor) dois dias depois de ter tomado pílula do dia seguinte. Comecei a ficar mais atenta aos sinais, mas imaginei que pudesse ser tudo efeito da PDS. Quatro semanas depois fiz um teste de farmácia, o resultado foi um falso negativo. Com mais duas semanas tive um sangramento mas a menstruação não desceu. Fiz um novo teste de farmácia, positivo.

Levei dois dias para fazer o exame de sangue e mais dois para conseguir fazer o Ultrassom, estava grávida de quase 7 semanas.
Nesse dia encontrei meu parceiro. Nós estamos juntos há pouco tempo, eu não sabia qual era a posição dele em relação ao aborto e tive dúvidas sobre contar ou não. Decidi contar e falei claramente que não queria um filho agora. Ele concordou, não era a hora pra mim, pra ele ou pra gente.

Pensei inicialmente em fazer o procedimento em uma clínica, mas a única que consegui indicação cobrava cinco mil reais. Surgiu então a indicação de um grupo feminista de SP que fornece os medicamentos (mifepristone e misoprostol – citotec). Decidi entrar em contato principalmente por acreditar na importância desse trabalho que elas fazem de forma voluntária e sem fins lucrativos.

Estava ansiosa, queria mandar mensagem no facebook, no whatsapp, email, sinal de fumaça, pombo correio… Mas eu acredito cegamente no movimento feminista e a indicação tinha vindo da feminista mais coerente que eu já conheci, então eu segurei a ansiedade e esperei, sabendo o risco que elas correm em nos ajudar. Demorou alguns dias para receber uma ligação de uma delas, falamos muito pouco no telefone e marcamos apenas que seria no próximo domingo. O próximo contato foi apenas no dia, um SMS com o horário e local.

Havia mais duas mulheres nesse encontro, além da que iria nos dar os remédios. Tivemos uma longa conversa para esclarecer o processo, a forma de tomar os remédios, verificar se estávamos todas seguras da decisão e assegurar que era uma decisão tomada por nós e não por nossos parceiros ou qualquer outra pessoa. Saímos de lá mais tranquilas e com a solução nas mãos.

O kit completo (um comprimido de Mifepristone e seis de Misoprostol) custou R$250.

Voltei ao Rio de Janeiro e fui no dia seguinte para a casa de uma amiga. Já havia tomado o Mifepristone no dia anterior. Tomei os comprimidos citotec (4 deles de forma sublingual) e cerca de meia hora depois tive muita cólica e um sangramento leve. Duas horas depois tive muito enjôo, vomitei uma parte do jantar e as cólicas pararam. Tive muito medo de ter cortado o efeito do remédio. Após três horas deveria tomar mais dois comprimidos, então tomei muita água para que, se houvesse mais enjôo, vomitasse antes de tomar os comprimidos finais. Vomitei muito, esperei mais um pouco e tomei os outros dois, também de forma sublingual. Tive mais um pouco de cólica, bem mais leve. Era uma da manhã e eu peguei no sono.

Acordei e não senti nada, não tinha mais nada de sangramento no absorvente ou na toalha. Levantei, fui ao banheiro e saiu algo parecido com um coágulo muito grande. Não cheguei a olhar muito, puxei a descarga e sabia que já estava resolvido. Hoje faz uma semana, tive sangramento típico de menstruação nesse tempo, vou fazer um novo Ultrassom para ver se ficou algum vestígio em dois dias.

Durante todo o processo muitas pessoas me falavam que uma hora eu iria cair na real e deixar de estar tão tranquila, tão segura. Fiquei esperando esse momento chegar… Quando peguei os comprimidos, quando tomei o primeiro, quando tomei os 4 primeiros citotecs, quando vi a placenta cair, pensava “agora vem o baque!”… Ainda não chegou e acho que não vai chegar.

Acho que várias coisas me ajudaram a não ter esse “peso na consciência”:
Nunca quis ter filhos, estou numa fase da vida focada no lado profissional, sou feminista e acredito no direito de escolha da mulher.

Já tive que debater várias vezes sobre o direito ao aborto seguro com muitas pessoas, e isso me ajudou de certa forma a ter convicção no que eu havia decidido, apesar de ter ouvido de todos (médicos, amigos, família) que uma hora baixa uma luz divina e floresce em qualquer mulher grávida o instinto maternal e a vontade de bater fotos fazendo carinho na barriga.

Isso não aconteceu comigo exatamente por ter segurança de que, nesse momento, um filho não cabe na minha vida.

O trabalho da mulher que me forneceu os remédios também foi essencial, não apenas por ter dado acesso à medicação mas por saber que temos com quem contar, que JUNTAS SOMOS MAIS FORTES. Saber que eu estava fazendo isso com o apoio de mulheres feministas me deixou segura em relação ao procedimento, à procedência dos remédios, à minha decisão.

Minha maior preocupação depois disso tudo foi exatamente o contrário. Comecei a pensar que eu devia ter algum problema. Se todas as mulheres inclusive as que fizeram aborto me diziam que eu ia ficar triste, eu devia ter algum problema, alguma sociopatia ou algo do tipo pra não ter tido dúvida nenhuma, tristeza nenhuma.

Estava me sentindo DESUMANA.

Falei com uma amiga sobre isso e a resposta dela foi simples: “Você fez a coisa certa, por isso não está com peso. Nem tem que ter.”

Ainda está tudo muito recente, mas estou tranquila, convicta de que fiz o que era melhor pra mim. Tenho muita sorte de ter as pessoas que me ajudaram na minha vida, a grana para a viagem, o apoio do meu parceiro… Isso tudo contribuiu para que fosse tudo tranquilo.

Sou a favor da descriminalização e da legalização do aborto.

A mulher grávida é a única que pode decidir se está disposta a gerar um filho e se tem condições pra isso. Mesmo quando o parceiro diz que quer ter o filho, sabemos que na grande maioria das vezes a responsabilidade na criação de uma criança é da mulher. Não é do Estado, não é do parceiro, não é da vó, da vizinha, do padeiro. É da mulher grávida.

O direito ao aborto legal, seguro e gratuito deve ser garantido por questões de saúde pública. O aborto acontece na ilegalidade e custa caro, qualquer que seja o método escolhido, resultando em mortes, abusos psicológicos na rede de saúde pública em casos de complicações, problemas conjugais, entre tantas outras dificuldades que não existiriam se reconhecêssemos o direito da mulher de decidir sobre o próprio corpo.

Quando vemos as estatísticas de países onde o aborto é legal entendemos a importância da descriminalização e da legalização. Nesses países o número de mortes devido a complicações é quase nulo, e o número de mulheres que abortam é menor que nos países onde o aborto é ilegal e criminalizado.

A legalização vem acompanhada de políticas de planejamento familiar, suporte financeiro e psicológico. Mulheres sem condições de gerar um filho tem o apoio necessário para poder ter a criança caso queiram, mulheres que não querem ter um filho também recebem o mesmo tratamento.

Não tenho filhos ainda, mas penso em ter no futuro caso tenha condições financeiras e emocionais para isso.

Não sou praticante de nenhuma religião, mas tenho um lado conectado com o espiritual.