#clandestina80

Branca, 31 anos, Ceará.

Antes de explicar o procedimento, a dolorosa experiência de fazer um aborto é importante falar sobre os motivos pelos quais uma mulher decide fazê-lo. Pra quem nunca passou pela situação, acha que é fácil! Não é! Decidir, fazer, superar… É doloroso!

Eu fui mãe aos 16 anos. E depois aos 29 anos.
Nao “planejei” meus dois filhos, mas os amei desde que soube que estava gerando-os. Romantizei a maternidade e não tive medo!! Nunca me passou pela cabeça a possibilidade de abortar!

Na primeira vez, engravidei num flash back com o ex namorado que já havia morado comigo na casa dos meus pais! Eu achei um sonho! Os hormônios alterados e junto aos enjôos, enjoei também o pai do bebê e não queria vê-lo pintado de ouro! Diziam que quando nascesse, eu voltaria a amá-lo! Engano! Minha mãe muitas vezes usava a criança pra me obrigar a fazer tudo do jeito dela. Como não cuidar dele pra eu ir a escola se eu não fizesse absolutamente tudo como ela ditava.

Cursei ensino médio levando meu filho com 2 anos pra aula… Depois parei porque ele já estava grandinho e atrapalhava a aula. Quando retornei, finalmente concluí o ensino médio aos 22 anos! Isso é apenas uma pincelada dos percalços da minha primeira maternidade!

Anos depois, casada, morando de aluguel, com um filho de 12 anos, desempregada e o marido também, cursando o último ano de faculdade… Grávida! Chorei. Não queria mais filhos! Mas eu não podia tomar anticoncepcional, pois alterava muito os meus hormônios e eu fazia tratamento pra depressão, e os anticoncepcionais só pioravam o quadro. Laqueadura tava fora de questão pelo SUS por conta da idade, e particular eu não tinha dinheiro. DIU, na minha cidade, não é fácil colocar pelo SUS também… Enfim, me restava camisinha.

Optei mesmo pelo anticoncepcional, mas esqueci por 3 dias seguidos. Totalmente. Bucho! Chorei. Aceitei. Amei. Sabia que abriria mão de muita coisa… Mas tudo bem! Pra algumas pessoas, gravidez não é doença, certo? Pra mim é! Todos os sintomas! Fico de cama. Vomito até ferir o esôfago. Emagreço. Desidrato. Não tenho ânimo pra NADA. Fico acamada. Era tchau, faculdade. Minha mãe ficou cuidando do mais velho que já tinha 12 anos e não dava trabalho e de mim que precisaria ser cuidada como bebê por alguns meses.

O marido? Enjoei também! Mas não me separei. A separação veio 3 anos depois, quando a bebê já tinha 3 anos e eu me sentia mais tranquila pra voltar a trabalhar!

Dado esse contexto prévio, vamos ao contexto no qual eu vivia quando me descobri grávida pela terceira vez:

Separada, 2 filhos, trabalhando 10 horas por dia por 1 salário (no dia que confirmei o exame de sangue foi o dia que assinei o aviso prévio na empresa – sintam o drama!), pagando aluguel que leva metade do salário, e “saindo” (não era um namoro) com um rapaz 6 anos mais novo, desempregado e amigo do meu ex marido!

Imagina toda a condenação que eu passaria numa cidade pequena! Piadas, comentários maldosos… Calúnias de que eu havia me envolvido com um amigo dele antes da separação…3 filhos: 1 de cada pai! Mas isso seriam apenas o falatório, certo? Eu poderia ignorar!

Vamos ver meu lado financeiro: não dava! Não tinha como! Eu estava sendo demitida… Poderia pedir reintegração, tá previsto em lei… Mas em uma empresa pequena, trabalhar grávida com quem não te quer por perto… É pedir pra viver um turbilhão de choros! 8 dias após minha demissão fui chamada pra outro trabalho, o salário seria o mesmo… Se eu contasse que tava grávida, me dispensariam pra eu ser reintegrada ao emprego anterior. O que eu não podia fazer.

Meu lado emocional: Eu mal dou conta de 2 filhos. O que eu poderia oferecer àquele inocente? Mas teria o pai pra ajudar, certo? ERRADO, porque eu não conseguia olhar na cara dele! Não conseguia conversar com ele. Eu enjoei ele. Era visceral.

Passava o dia mal, com enjoos, com fome (porque nada me entrava) e não pedia ajuda a ele pra não ter que vê-lo. Ele não tinha culpa, e se revelou o homem mais forte que já conheci em toda a vida, pois, apesar de toda a minha repulsa, ele estava ali, disponível, atencioso, fazendo de tudo pra tornar a minha dor suportável. Não tentou me convencer a ter a criança, pois via o quanto aquilo era doloroso pra mim!

Meu lado físico: eu não conseguiria gestar novamente faltando semanas para comentar 32 anos. Trabalhar pra sustentar a casa, acompanhar a rotina de um filho adolescente, cuidar de uma criança de 3 anos, com todos os vômitos, enjoos, sem suportar o pai da gravidez por perto?

Como eu poderia retornar a faculdade? A caçula havia saído da mama há 2 meses e eu tava planejando voltar a faculdade em 2019… Seria impossível.

Eu imaginava como seria quando o bebê nascesse, levar a de 3 anos pra escola… De bike, mochilas, cadeirinha… E um bebê? Cada detalhe era inviável!

Cogitei ter e doar! Não conseguiria. Eu tinha certeza que na hora que pusesse meus olhos eu o amaria e enfrentaria qualquer privação ou dificuldade por ele. Jamais conseguiria imaginar que havia um filho por aí, em algum lugar, sem saber se ele estava bem ou não!
Pensei em dar ao pai… Mas como eu faria isso? Como eu viveria sabendo que uma pobre criança iria crescer com o sentimento de ter sido abandonada pela mãe? Eu o amaria demais pra permitir que ele se sentisse assim!

Como engravidei?
Já disse que não posso tomar anticoncepcional e quando tentei minha cabeça de vento esqueceu e eu engravidei, certo? Nada de bobeira agora! CAMISINHA! A camisinha não estourou… Ela escapuliu pra dentro e não vimos! Só no fim percebemos o que havia acontecido e às 7h da manhã estava tomando uma pílula do dia seguinte… Porém, eu não sabia que antibióticos corta o efeito da pílula do dia seguinte e eu estava em tratamento pra faringite!

Atrasou, fiz teste de farmácia. Positivo! Fiz outro: positivo! Fiz o de sangue: NEGATIVO!
AMÉM. Pode ser ao alteração hormonal por causa da pílula. Comecei a sentir dores… E o atraso …. Opa, pode ser algum problema. Vamos a transvaginal… O médico pediu exame de sangue, pois havia um coágulo que parecia gestação de 4 semanas. Gelei!
Fiz o de sangue: positivo!

Passei na empresa, assinei o aviso e fui pra casa! Liguei pro rapaz e ele veio. Me achou na cama, aos prantos com o exame na mão. Aquilo destruiu ele por dentro! Ele me amava e queria um filho comigo… Mas uma gravidez naquele momento, só me trazia dor e desespero! Ele disse que me apoiaria em qualquer que fosse minha decisão.

Falei com um casal de amigos, que através de bons contatos conseguiram 6 comprimidos de misoprostol por um preço razoável. Ele pagou. Fui pra casa de uma amiga! Medo de morrer! De deixar meus filhos. De passar mal e no hospital ser presa! Muito medo.
Coloquei 4 sob a língua. 3 horas depois os outros 2.

O sangramento começou com algumas cólicas. E só. Pouco sangue, poucas cólicas! 5 dias depois, outro ultrassom com a desculpa de estar preocupada! Médico falou que haviam poucas chances do embrião avançar, que eu me preparasse e refizesse o exame em 10 dias. Alguma má formação estava sendo rejeitada pelo corpo e por isso a ameaça de aborto espontâneo!

10 dias depois voltei! Estava com 6 semanas! Ouvimos o coração! O médico comemorou um embrião forte. Perguntei se o primeiro sangramento poderia ter deixado sequelas, ele disse que só daria pra saber com 25 semanas! Agora era uma questão de concluir! Não poderia deixar ele nascer com riscos de imperfeições por uma atitude minha.

Fui orientada que a quantidade havia sido pouca e fiz uma nova encomenda com um fornecedor diferente… 12 comprimidos. Bem mais caros! Ele pagou novamente. Desempregado, mas conseguia o dinheiro! Certamente seria confiável dessa vez…
Fui pra casa do “namorado” mal olhando ou conversando com ele. 4 sob a língua e 2 introduzido. 3 horas depois mais 4 sob a língua… Nada de dores, ou sangramento… Fui trabalhar. Tive uma forte enxaqueca e fui pra minha mãe. Vomitei.
Fiquei bem.

Não era possível! Segunda tentativa e não dava certo! Minha mãe descobriu nesse dia que estava grávida! Não falei que já havia tentado abortar, mas falei que não teria a criança! Ela tentou me dissuadir, mas não permiti que ela falasse. Não permitia que ninguém ousasse me dissuadir, porque ninguém me ajudaria a cuidar! Apenas o pai… Eu sabia que ele me ajudaria. Mas nós, mães, sabemos como é… Por melhor que seja, o maior peso e maiores abdicações são as nossas!

Essa pessoa que me vendeu os 12 me indicou um farmacêutico que manipula um gel e traria outros comprimidos de outro laboratório. Não haveria erro. Caros! E eu com medo.
Esse farmacêutico conseguiu, a meu pedido, uma médica: 5 mil reais. Era inviável! Eu preferia o procedimento clínico pra não ter mais erros. Mas nem vendendo a moto dele daria esse dinheiro todo.

Lembrei de uma amiga, feminista e que com certeza saberia onde me indicar algo certo! Fui. Aliás, fomos. Ele sempre comigo apesar da minha rispidez.

Ela me explicou que conseguiria gratuitamente, a menos que eu quisesse contribuir. Alertou-me dos perigos de ser presa. E combinamos um código pra conversar sobre o assunto.

Demorou algumas semanas e eu desesperada! No dia que o farmacêutico me liga, cobrando os olhos da cara, ela também me liga pra dizer que conseguiu. Ufa!

Fiz mais uma ultrassom. 10 semanas! Ouvi o coração dele. Foi devastador! Pois eu sabia o que eu faria… Nunca permiti que ele fosse aos exames comigo. Tinha medo dele se apaixonar pelo nosso pequeno projetinho de filho… Se ele tivesse lá naquele momento, teria implorado pra eu não abortar!

Fomos pegar a encomenda com a minha amiga! Faltei trabalho, e fui pra casa dele!

Tomei 4 sublingual. Nada de introduzir. 3 horas depois começaram as cólicas e já era hora de mais 4 sublingual. Quando as cólicas começaram, começou uma sensação de febre… E diarreia! Muito líquida! E amarelo-esverdeada. E vômitos. E calafrios. As dores eram contrações. Eu as conhecia bem. Tive 2 partos normais. Mas eram contrações apenas no pé da barriga… Muito fortes. Desisti de ficar voltando pra cama e fiquei sentada no vaso, agarrada na mão dele… Ele foi pegar água de coco pra mim e eu agarrava na pia do banheiro. Doía muito! Mas eu sabia que tava funcionando! Medo de morrer ali! Medo de ir pro hospital e descobrirem! De ser presa. E por mais que ele estivesse comigo, a sensação de solidão é enorme… Porque é algo que ninguém pode viver por você.

Depois de muita diarreia e vômitos, voltei a cama, nua, sem calcinha, coloquei um absorvente grande e um lençol forrando a cama. Deitei! Ele segurava a minha mão! Eu tinha dor e medo. Senti uma vibração no útero e segundos depois um PLOC… Tomei um susto. Ele me ajudou a levantar e ir ao banheiro. O lençol ficou ensopado de água e quando levantei, desceu sangue no absorvente…

Sentei no vaso e veio mais sangue. Quando tentei levantar, vi o embrião saindo. Travei. Em choque. Não queria que ele também visse. Não queria esse trauma pra nós dois. Mas vimos. E a sensação até agora… As palavras que não paro de ouvir na minha cabeça é: “DEIXEI UM FILHO NO VASO”.

Ele ajudou a tirar, eu de olhos fechados… Me ajudou a me banhar e me levou pra cama. Toda dor passou. A sensação de febre e os calafrios. Ele foi comprar ibuprofeno e eu fiquei sozinha.  Outra cólica e eu fui ao vaso: a placenta! E muitos coágulos de sangue. Foi um parto. Todas as etapas de um parto. Mas eu não levei o bebê pra casa… No dia seguinte estava trabalhando.

Sangrei forte com muitas cólicas por uns 5 dias. Depois diminuiu. Fui a uma médica de minha confiança com 15 dias. Contei tudo. Fizemos outra transvaginal e ela garantiu que estava tudo certo. Sem riscos de infeção e que eu menstruaria por mais uns 15 dias.
20 dias após o procedimento eu menstruei novamente e com muitas cólicas. Mas tudo normal.

Com o rapaz… Bem, o enjôo passou e me vi apaixonada por ele novamente, no entanto, o mais correto era terminar e cada um pro seu lado. Eu me sinto muito grata por todo apoio que tive dele e admiro seu caráter e força. Não foi fácil o que vivemos.

Não me sinto arrependida. Apenas culpada! Culpada por não ter amado aquele bebezinho desde o primeiro instante! Por ter sido egoísta… Mas, acredito que a decisão foi boa pra ele também! É melhor não vir a esse mundo! Foi uma decisão boa pros meus filhos que terão uma mãe com maior disponibilidade de correr atrás de seus objetivos e uma melhor vida pra eles! Foi melhor pro pai que não está preso a uma mulher e um filho não planejados e pode tocar sua vida!

Eu me sinto livre novamente! E feliz! Com esperança! Posso planejar… Me sinto forte pra lutar! Consigo levantar, comer, conversar, sorrir… Foram 7 semanas de terror desde que descobri a gravidez até o aborto. Escondendo. Disfarçando. Pensando nos prós e contras. Com medo de não conseguir interromper! Foi um pesadelo! Um longo pesadelo! Apesar de parecer uma nova chance pra mim… Dói. Dói muito! Trabalho minha mente pra me perdoar e aceitar que foi sim a melhor opção!

E sou grata a todas as pessoas que me ajudaram. Me apoiaram. Não me julgaram. Pessoas que me amam e que se pudessem, teriam sentido tudo no meu lugar por alguns dias, pra me dar uma pausa, um alívio… Gratidão! 13 dias após o aborto, completei 32 anos e eles fizeram a surpresa mais linda: um bolo de mulher maravilha!

Agora, tô mais decidida que nunca: quero a minha laqueadura! Espero nunca mais passar por isso! E sabe a minha fé? Continua igual! O meu Deus? Continua me amando! Ele sabe das minhas limitações… E, se Ele não aprova o que eu fiz… mas não deixou me amar por isso! Sou evangélica.

Sou a favor da legalização do aborto! Sempre fui! Sempre imaginei que EU jamais faria! Jamais precisaria! Mas sempre tive empatia por mulheres que não queriam ser mães e acabaram engravidando… Até mesmo por dó da criança! O mundo já é tão injusto, imagina vir a esse mundo onde nem a mãe desejou essa criança!
As pessoas são rápidas em julgar as abortistas, mas essas mesmas pessoas não vão ajudar com uma lata de leite, nem um pacote de fraldas ou uma noite cuidando de um bebê pra mãe descansar ou trabalhar, ou estudar…
As mais rápidas na hora de criminalizar o aborto são as mais rápidas em declarar “quem pariu os mais teus que balance”!